17.9.09

Uma Prenda

Amadeu Baptista trouxe-me hoje o livro da imagem acima, no regresso de ter ido a Setúbal receber o Prémio de Poesia Bocage 2009. Tinha-lhe dito não sei quando e sem mais, que andava, há muito, à procura desse título de Erskine Caldwell, para o reler e para o ter. Li-o em jovem, na primeira edição (o da imagem é da segunda), livro que perdi ou deixei perder nas andanças e mudanças da vida. Telefonou-me de Lisboa a dizer que tinha uma prenda para mim, tão longe estava eu de a surpresa ser A Estrada do Tabaco, mas não longe da sua gentileza: Amadeu Baptista é um gigante amável, propenso a esses gestos.

Fomos almoçar juntos; Amadeu, umas belas tripas à moda da nossa cidade(1); eu, a olhar para a feijoada, uma mísera dieta de perder peso, por antes ter andado a comer como um gourmet descontrolado. Durante o almoço, falámos da cerimónia da entrega do prémio, que me deixou bastante bem-disposto (bebi água). Não fui a Setúbal, é longe, e a minha vida anda ocupada de mais para meu gosto, mas Inês Ramos foi e escreveu o que abaixo deixo copiado, retrato incluído, e colo, igualmente daí, o poema que Amadeu Baptista leu na íntegra, durante a cerimónia, com a sua voz poderosa e bem colocada, estou a imaginar a cena e o palco. Seria digna de um vídeo no Youtube, para efeitos da campanha e não só.

(1) Nasci em Ponta Delgada, de onde saí com menos de dois anos. Considero-me do Porto, onde vi o mundo pela primeira vez e onde me sinto como se fosse a minha terra natal. Se sou de algum lado, é daí. Daí são as referências da minha infância.

"O poeta Amadeu Baptista recebeu ontem (dia de Bocage), no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, o Prémio Manuel Maria Barbosa du Bocage 2009, modalidade de poesia, promovido pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).
O júri do concurso atribuiu por unanimidade os prémios a Amadeu Baptista, pelo trabalho “Atlas das Circunstâncias”, prémio de Poesia (2500 euros) e a Mário João Rosas Rebelo Correia, pelo trabalho “A Insónia”, prémio Revelação (1500 euros).
Na cerimónia de entrega do prémio, perante a ampla assistência e os membros da mesa composta pelo representante do Governo Civil de Setúbal, a Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, o Presidente da LASA e o Presidente da Biblioteca Nacional em representação do Ministro da Cultura, Amadeu Baptista explicou que, sendo um poeta desempregado e porque tendo várias vezes solicitado ao Ministério da Cultura o estatuto de mérito cultural (do qual nunca obteve resposta, apesar de ter 30 livros publicados e ter recebido até ao momento 10 prémios literários, sendo este o 11.º) concorre a concursos literários para não ser um indigente. E perante a mesma assistência e plateia, Amadeu leu, do primeiro ao último verso, o poema que escreveu há poucos dias sobre Jorge de Sena, que me enviou para publicação neste blogue e que pode ser lido aqui."

Trasladação dos ossos de Jorge de Sena

De Santa Bárbara chegaram os ossos do poeta
que a pátria exilou. Uns pulhas de um assim chamado Ministério
da Cultura, que não dão à poesia a mínima importância,
ergueram-se a esse gesto como se não se soubesse
quanto os poetas detestam, como tantas e tantas vezes
foi provado e a paródia eleiçoeira, desta vez,
fez promover, não por amor aos versos, certamente,
mas para marcar a determinação da pequenez
em que todos morrem de fome da fartura enfatuada
desta gente. A ocasião, como é comum dizer-se,
faz o ladrão, e a estes não escapam as oportunidades
que o brio predador lhes aconselha, sujando tudo em volta,
dando a tudo o que é grande a represália de sempre,
tal como a todos os poetas já fizeram,
tal como fizeram ao Botto e agora ao Sena fazem, que esperou
mais de trinta anos para que a terra portuguesa de vez o afeiçoasse,
notando-se que como clandestino aqui chegou, agora,
não pela obra dele ou os seus actos, mas pela solerte ratice da                                                                                                [canalha
que nunca subirá a púlpitos para pedir desculpa do mal que nos tem                                                                                        [feito
e à poesia sempre odiará por lhe saber o fantástico poder que a                                                                              [cilindra.
Brancos os ossos chegam às exéquias da trasladação que por                                                                                    [demais tardou
e não há corais de crianças das escolas a entoar-lhe cânticos,
não se promove gente a ler-lhe os livros, não se lhe divulga a obra,
nem os telejornais abrem com a notícia da chegada justa,
a todos convocando não só a que assistam e aprendam, mas que
                                                                             [usem
a sua arte de música e de palavras para ampliar a verdade e a

                                                                             [liberdade,
o corpo e os sentidos, a dignidade de resistir a tudo,
por mais que o vilipêndio se prolongue e se não salde nunca a dívida.
Não é para admirar. De humilhações, exílios e imbecilidades sofreu

                                                                             [Jorge de Sena
durante toda a vida e este misto de preito e de omissão está na linha
do que a pandilha execrável é capaz, tratando-se de dar com uma                                                                               [mão
para tirar com a outra, como é próprio do descaramento e do

                                                                             [
oportunismo
que, imparável, os há-de condenar ao esquecimento de nunca terem                                                                               [nome,
nem espinha dorsal, nem verticalidade, nem ossos que alguma vez
                                                                             [possam
passar por nossos.

Amadeu Baptista
(inédito)
 
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