No n.º 2 da luxuosa Revista Inútil, saída em Abril, com uma tiragem de 800 exemplares e 670 g para 56 folhas de papel couché mate, capa incluída, quase da mesma gramagem daquelas, no inusitado tamanho de 310 x 235 mm, surgiu-me, avultando entre o mais que li, o poema abaixo de Amadeu Baptista, impresso em letras brancas sobre fundo negro, ocupando página e contra-página (13-14).
Trata-se de um poema que se constrói de uma vasta enumeração, constituída por sessenta perguntas, 95% das quais cabem em um e dois versos, e 5%, em três. Do número de perguntas e dos versos que percentualmente as ocupam, podemos de certo modo inferir da intensidade do poema, se nos abstrairmos do que pergunta e se não será uma chatice o que nele se nos inquire. Mas logo no primeiro verso ficamos agarrados ao que abalará o vapor que passa, e somos impelidos para a pergunta seguinte, na expectativa de uma resposta, e para a que vem depois sem nada nos ser respondido, e assim por diante, até o galope da leitura, que o poema nos exige, anular os pontos de interrogação, e irmos embebida e aceleradamente alheios, já não nas perguntas, mas na solução que as próprias perguntas poderão dar, para, num final descomprimido por versos bastante mais curtos, voltarmos à pergunta inicial nos dois últimos versos, a de um barco que não tem resposta e que fecha em si todas as perguntas .
Um poema de luxo numa revista luxuosa.
NOTAÇÕES PARA UM CALENDÁRIO PERPÉTUO
o que abala o vapor que passa, a sulcar as águas?
aquele que vai sonhando com a escuridão, como li em [pavese (sognando il buio)?
outra dor mortal, que se fixou entre a décima e a [décima-primeira vértebra?
alguma coisa que se perdeu nos confins da infância,
ou nos confins da infância dos nossos filhos?
este rumor que oscila no forro da casa e não sabemos
de onde veio, quem é e para onde vai?
a cor que nunca saberemos definir muito bem, a cor
que domina, entre o esmeralda e o negro asa-de-corvo?
o fim do mundo, sempre tão próximo e temido, ó [contemporâneos?
o juízo final?
a certeza de não haver qualquer certeza, de djerba a [padron?
o óbito que o médico há anos assinou no hospital de [santa maria, de um homem
que jazia a meus pés quando se pensou que a minha [nevrite era um ataque cardíaco?
a sábia mulher das castanhas, tão magra, que um dia me [ofereceu num cartucho
a recordação do outono de 89 para toda a vida?
a fotografia da casa de espinho, com o cemitério em [frente, que ángeles afirmou
ter visitado certa noite de luar?
a brigada da polícia que a mulher chamou certa vez [porque num acesso de cólera
o homem partiu a sala toda?
outra dor mental, entre o hemisfério direito e o [hemisfério esquerdo?
o flagelo dos mais pobres?
a morte da avó, a instalar em mim, definitivamente,
a vacilação, o medo, o fascínio?
o segredo inviolável da carta lacrada (lacre azul) poisada [na base do vaso (vaso vermelho) de avenca?
o pássaro imóvel, que canta, circunstancialmente?
o sorriso de cândida, quando me pergunta se quero [dançar?
certas rochas magmáticas, que a aliança com o vento [solidifica?
o som do corne inglês, a ressonância do cravo, o sortilégio da anta?
a vigília do estore, que ninguém quer ver fechado?
a esconsa janela da taberna, através da qual se observa [a claridade embriagada?
todas as sombras de santo stefano belbo?
a fita de cetim que com estrondo esvoaça na rua, [quando não passa ninguém?
o ciclista que vai em último lugar na classificação geral [mas irá envergar a camisola amarela [antes do final da etapa?
o feitiço que o anúncio da rádio afirma ser irreversível ?
a feiticeira de que me falou alfredo na corunha (se tu [falas galaico-português
a minha pátria é a língua galaico-portuguesa, embora [portuguesmente me sinta irlandês,
de dublin ou de belfast) e que por ser galega dá pelo [nome de meiga?
a informação de capital importância a que ninguém [prestou a mínima atenção
e não é, afinal, de capital importância?
o papel de parede do primeiro andar do número setenta [e oito
da rua do monte de judeus no dia 6 de maio de mil [novecentos e cinquenta e três
como apontamento autobiográfico?
teotihuacan, silves ou florença, em finais da década de [setenta?
a memória fotográfica de verónica?
determinadas somas e outras subtracções que se [fizeram num guardanapo de papel
como quem escreve um poema (uma arte poética?)?
o último bilhete de eléctrico do ruy belo guardado entre [um livro de carlos de oliveira?
a mulher da noite de madrid?
a outra mulher de madrid que observei a comer batatas [fritas
perto do museu do prado (goya)?
conímbriga, que sempre visitei quando ia com os meninos [a riachos,
chamando-lhes o olhar para determinadas ossadas que [lá estão e tenho a certeza
de que são as minhas?
a noite que acaba de cair no marão e abraça a montanha [com a hesitação
de um primeiro nevão?
o tâmega, de que amadeo pintou certo recôndito lugar?
o guarda florestal que acabou agora de acender o [cachimbo para poder ter
um incêndio – embora pequeno – para vigiar?
o ar circunspecto com que ele puxa a primeira fumaça e [acompanha no livro
o mais obscuro herói de emílio salgari?
o quase imperceptível assobio da brisa nas conchas [espalhadas no areal da tarde?
a sereníssima república de veneza, que para surpresa [minha nunca visitei
(murano fica perto?)?
esta dupla interrogação supracitada?
o flagelo dos mais pobres?
a crónica falta de cigarros (três da manhã!), obviamente [a desoras?
os alazões que me cavalgaram a ansiedade, a pretexto [de uma ideia que não quero
agora explorar, e são vermelhos (gauguin) e vão à [desfilada pela praia?
a palmeira de tânger, que não tendo visto nunca estou a [ver aqui?
dois triângulos escalenos desenhados a giz por um dos [heterónimos de pessoa
(ricardo reis, no ano da morte?) no cais das colunas
e que alguma chuva e muito anonimato deixou [esquecidos sob a luz das gaivotas?
o oráculo de delfos, que estabeleceu o choro de uma [mulher muçulmana
em alcácer do sal,
em dois mil e doze da nossa era (ano da minha morte?)?
esta segunda dupla interrogação supracitada?
o pingo de cera que derreteu no braço beneficiando a [imagem impressa sob a pele?
o volkswagen branco matrícula hg-63-24 que estacionou [numa página de pedro tamen
e a intertextualidade mandou parar aqui?
o omisso incidente entre a rapariga cigana, núria, e zé [manel, carpinteiro-de-limpos,
que a ponta de uma faca sujou para a eternidade?
um dos barcos que atravessa o rio e transporta um vulto [para a outra margem
(um lacrau?) ( uma predestinação?)?
esta terceira dupla interrogação supracitada?
a eternidade ela-mesma, diáfana e irreal?
o poço onde ela cai?
o rosto perplexo que lá em baixo brilha?
o coração cansado que nesse brilho mora?
o fluxo do vapor que passa e abala as águas,
encerrando assim o círculo, escarlate?
Amadeu Baptista
Nota: poema publicado neste blogue com autorização expressa do autor.
Trata-se de um poema que se constrói de uma vasta enumeração, constituída por sessenta perguntas, 95% das quais cabem em um e dois versos, e 5%, em três. Do número de perguntas e dos versos que percentualmente as ocupam, podemos de certo modo inferir da intensidade do poema, se nos abstrairmos do que pergunta e se não será uma chatice o que nele se nos inquire. Mas logo no primeiro verso ficamos agarrados ao que abalará o vapor que passa, e somos impelidos para a pergunta seguinte, na expectativa de uma resposta, e para a que vem depois sem nada nos ser respondido, e assim por diante, até o galope da leitura, que o poema nos exige, anular os pontos de interrogação, e irmos embebida e aceleradamente alheios, já não nas perguntas, mas na solução que as próprias perguntas poderão dar, para, num final descomprimido por versos bastante mais curtos, voltarmos à pergunta inicial nos dois últimos versos, a de um barco que não tem resposta e que fecha em si todas as perguntas .
Um poema de luxo numa revista luxuosa.
NOTAÇÕES PARA UM CALENDÁRIO PERPÉTUO
o que abala o vapor que passa, a sulcar as águas?
aquele que vai sonhando com a escuridão, como li em [pavese (sognando il buio)?
outra dor mortal, que se fixou entre a décima e a [décima-primeira vértebra?
alguma coisa que se perdeu nos confins da infância,
ou nos confins da infância dos nossos filhos?
este rumor que oscila no forro da casa e não sabemos
de onde veio, quem é e para onde vai?
a cor que nunca saberemos definir muito bem, a cor
que domina, entre o esmeralda e o negro asa-de-corvo?
o fim do mundo, sempre tão próximo e temido, ó [contemporâneos?
o juízo final?
a certeza de não haver qualquer certeza, de djerba a [padron?
o óbito que o médico há anos assinou no hospital de [santa maria, de um homem
que jazia a meus pés quando se pensou que a minha [nevrite era um ataque cardíaco?
a sábia mulher das castanhas, tão magra, que um dia me [ofereceu num cartucho
a recordação do outono de 89 para toda a vida?
a fotografia da casa de espinho, com o cemitério em [frente, que ángeles afirmou
ter visitado certa noite de luar?
a brigada da polícia que a mulher chamou certa vez [porque num acesso de cólera
o homem partiu a sala toda?
outra dor mental, entre o hemisfério direito e o [hemisfério esquerdo?
o flagelo dos mais pobres?
a morte da avó, a instalar em mim, definitivamente,
a vacilação, o medo, o fascínio?
o segredo inviolável da carta lacrada (lacre azul) poisada [na base do vaso (vaso vermelho) de avenca?
o pássaro imóvel, que canta, circunstancialmente?
o sorriso de cândida, quando me pergunta se quero [dançar?
certas rochas magmáticas, que a aliança com o vento [solidifica?
o som do corne inglês, a ressonância do cravo, o sortilégio da anta?
a vigília do estore, que ninguém quer ver fechado?
a esconsa janela da taberna, através da qual se observa [a claridade embriagada?
todas as sombras de santo stefano belbo?
a fita de cetim que com estrondo esvoaça na rua, [quando não passa ninguém?
o ciclista que vai em último lugar na classificação geral [mas irá envergar a camisola amarela [antes do final da etapa?
o feitiço que o anúncio da rádio afirma ser irreversível ?
a feiticeira de que me falou alfredo na corunha (se tu [falas galaico-português
a minha pátria é a língua galaico-portuguesa, embora [portuguesmente me sinta irlandês,
de dublin ou de belfast) e que por ser galega dá pelo [nome de meiga?
a informação de capital importância a que ninguém [prestou a mínima atenção
e não é, afinal, de capital importância?
o papel de parede do primeiro andar do número setenta [e oito
da rua do monte de judeus no dia 6 de maio de mil [novecentos e cinquenta e três
como apontamento autobiográfico?
teotihuacan, silves ou florença, em finais da década de [setenta?
a memória fotográfica de verónica?
determinadas somas e outras subtracções que se [fizeram num guardanapo de papel
como quem escreve um poema (uma arte poética?)?
o último bilhete de eléctrico do ruy belo guardado entre [um livro de carlos de oliveira?
a mulher da noite de madrid?
a outra mulher de madrid que observei a comer batatas [fritas
perto do museu do prado (goya)?
conímbriga, que sempre visitei quando ia com os meninos [a riachos,
chamando-lhes o olhar para determinadas ossadas que [lá estão e tenho a certeza
de que são as minhas?
a noite que acaba de cair no marão e abraça a montanha [com a hesitação
de um primeiro nevão?
o tâmega, de que amadeo pintou certo recôndito lugar?
o guarda florestal que acabou agora de acender o [cachimbo para poder ter
um incêndio – embora pequeno – para vigiar?
o ar circunspecto com que ele puxa a primeira fumaça e [acompanha no livro
o mais obscuro herói de emílio salgari?
o quase imperceptível assobio da brisa nas conchas [espalhadas no areal da tarde?
a sereníssima república de veneza, que para surpresa [minha nunca visitei
(murano fica perto?)?
esta dupla interrogação supracitada?
o flagelo dos mais pobres?
a crónica falta de cigarros (três da manhã!), obviamente [a desoras?
os alazões que me cavalgaram a ansiedade, a pretexto [de uma ideia que não quero
agora explorar, e são vermelhos (gauguin) e vão à [desfilada pela praia?
a palmeira de tânger, que não tendo visto nunca estou a [ver aqui?
dois triângulos escalenos desenhados a giz por um dos [heterónimos de pessoa
(ricardo reis, no ano da morte?) no cais das colunas
e que alguma chuva e muito anonimato deixou [esquecidos sob a luz das gaivotas?
o oráculo de delfos, que estabeleceu o choro de uma [mulher muçulmana
em alcácer do sal,
em dois mil e doze da nossa era (ano da minha morte?)?
esta segunda dupla interrogação supracitada?
o pingo de cera que derreteu no braço beneficiando a [imagem impressa sob a pele?
o volkswagen branco matrícula hg-63-24 que estacionou [numa página de pedro tamen
e a intertextualidade mandou parar aqui?
o omisso incidente entre a rapariga cigana, núria, e zé [manel, carpinteiro-de-limpos,
que a ponta de uma faca sujou para a eternidade?
um dos barcos que atravessa o rio e transporta um vulto [para a outra margem
(um lacrau?) ( uma predestinação?)?
esta terceira dupla interrogação supracitada?
a eternidade ela-mesma, diáfana e irreal?
o poço onde ela cai?
o rosto perplexo que lá em baixo brilha?
o coração cansado que nesse brilho mora?
o fluxo do vapor que passa e abala as águas,
encerrando assim o círculo, escarlate?
Amadeu Baptista
Nota: poema publicado neste blogue com autorização expressa do autor.