23.9.10

Amadeu Baptista, O Ano da Morte de José Saramago, &etc, Setembro de 2010



Se não me é fácil escrever sobre o livro de um amigo, embora tenha todo o gosto em o fazer, e só por isso o faço, mais difícil será escrever sobre um livro no qual eu e o meu nome e o poeta autor nos encontramos, dentro do poema (Por, exemplo: “e eu volto à infância, enquanto tu, Dempster das Irlandas que não há/ revives e oficias o K3 [1] dessa Guiné repulsiva para que o fascismo te mandou”), ia dizendo, nos encontramos dentro do poema que é o livro todo, na cidade e paradeiros comuns da infância, o Porto e a sua beira-rio, e nesta cidade do nosso exílio e morada, onde, por sorte e pela poesia, nos descobrimos, exílio desses sítios da infância cada vez mais presentes à medida que o tempo nos vai roendo os ossos.

Os poemas explicam-se por si mesmos quando são poemas, qualquer descrição do autor a explanar razões, factos e pessoas que lhe deram origem é excessiva e estranha à nossa própria leitura, que é sempre outra, porque outras são também a nossa experiência e as circunstâncias dela, isto por mais directa e compreensível que seja a linguagem poética.

No entanto, revelar a história deste livro não é descrever senão os motivos que levaram Amadeu Baptista a escrevê-lo, dos quais eu sou um deles pelo poema que lhe dediquei e pus aqui na altura. Surgiu então uma espécie de desiquilibradíssima desgarrada em que faço uma quadra, digamos assim, e Amadeu Baptista responde com um poema de quarenta páginas, arrumando-me de vez a veleidade de pensar sequer numa resposta.

Começou assim o poema, muito pausadamente:

"Não se desfloram capões no sânscrito do dia,
seja a questão columbófila o supremo fenómeno
ou haja umas escadas a subir para o lado poeta
dessa cidade perdida, agora entregue às lojas chinesas,
onde nenhuma aurora há
(…)"

Para além destas notas, que são apenas curiosidades para memória futura, temos o livro, em que o título tem uma importância fulcral para a definição da poema e do modo de o poeta estar no mundo.

Amadeu Baptista parafraseou O Ano da Morte de Ricardo Reis, mudando a morte de Ricardo Reis para a do autor do romance, que, por sua vez, pôs o Dr. Reis a morrer no início do período do fascismo luso. Passados oitenta anos, a situação política e económica do país é de novo muito grave e põe-nos numa encruzilhada em que não podemos escolher o caminho, porque já foi escolhido ou está a sê-lo para nós. E é neste ano de 2010 que Saramago se vai, como que dando por irreversivelmente findo um período e uma postura, já a situação presente começara, porém sentindo-se particularmente este ano a sua gravidade. Amadeu Baptista, a meu ver, quis fazer do título um marco não só de separação, como, para aquém dele, de referência do tempo que vivemos. Diz a determinada altura, num verso que engloba todas as minhas palavras sobre o assunto:

"(…) nada do que foi vigora agora no entreacto universal"

O poema vai buscar boa parte do seu grande vigor ao confronto do passado com o presente, sem possibilidade de síntese, o passado da infância com um presente, testemunhado e contestado, sem horizonte e sem que o passado seja um tempo de sossego, porque nada é simples e o presente ocupa-nos e endurece a memória:

"Ah, dancemos, ainda, irrevogavelmente,
soltemos uma gargalhada visceral sobre tudo isto,
registemos a infância como padrão do dia
[em que começamos a esperar"

Verso largo, palavra corrida e forte, poema para ser lido de uma vez e ouvido por quem o diga bem (o poeta, por exemplo), semântica sem obscuridades habilidosas, reflexão poética onde pareceria improvável haver lugar a ela, dada a velocidade que se adivinha na escrita, isto se não soubermos que muita da poesia de Amadeu Baptista tem esse pendor reflexivo, que a enriquece e lhe dá amplidão. Assim, o Ano da Morte de José Saramago. Um poema largo, de grande hausto, de leitura apaixonante e um livro entre os melhores de Amadeu Baptista.

1 - Aquartelamento subterrâneo na Guiné do tempo da guerra colonial, que foi o pesadelo de muitos.
 
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