14.2.11

As Junções, de Hugo Milhanas Machado

As Junções, de Hugo Milhanas Machado (HMM), Edições Artefacto, 2010, é uma colectânea de poemas, já o título do livro o revela, dividido em três partes, a primeira de um amor celebrado em prémios de montanha de um Tour de France; a segunda é uma reunião de vinte poemas; e a terceira, um poema de poemas.

Destas partes, uma já era minha conhecida, a primeira: Montanhas Mágicas, título que, remetendo-nos para A Montanha Mágica de Thomas Mann, nada tem a ver com o romance, antes e muito claramente, com as montanhas a que os ciclistas sobem em competição.

Em 2008, HMM obteve com este conjunto de treze poemas, o prémio José Luis Peixoto, instituído pela C. M. de Ponte de Sor. Não que este tipo de concursos garanta à partida a qualidade do que é eleito. São sempre demasiadas as vezes em que júris de concursos promovidos por câmaras municipais e similares têm premiado a mais bizarra falta de qualidade. Digo-o tanto mais à vontade quanto As Montanhas Mágicas não precisariam de prémio nenhum para se afirmarem à primeira leitura. No entanto, devo esclarecer que o concurso se destina, pelo menos até ano passado, a incentivar jovens poetas que não excedam os vinte e cinco anos, o que lhe dá outro mérito, o de conferir não só maior visibilidade aos jovens esmagados sob uma torrente editorial contínua, mas também o de se constituir em incentivo à consolidação da criatividade revelada.

A parte Montanhas Mágicas vem dedicada a um amigo do poeta e à memória de dois ciclistas, que não esquece, “El Chava” Jiménez e Marco Pantani, trepadores eméritos, que morreram aos trinta e poucos anos, nos primórdios deste século. Serve isto para dizer que a poesia de Hugo Milhanas Machado reflecte, em claridade, o seu modo de viver. Pratica ciclismo, é treinador de uma equipe de andebol, para além de leitor de Português na Universidade de Salamanca, três dados importantes para mais fundo se lhe entender a poesia.

"HAUTACAM

Eu gostava era de ter o maillot jaune
nem que fosse para te ir ver a casa
olha que amor não se diria
seria de enamorar a vizinhança

Que pena não a ter
no dia em que te toquei a trança
eu gostava era de ter o maillot jaune
ser mesmo um herói vês tu
na Volta a França
"


Todos os treze poemas resumem uma poesia sem torturas, muito mais partícipe da vida do que a ver ir em outros, de resto como o geral da poesia de HMM.

Nas duas partes seguintes, ao contrário da primeira, acentua-se muito mais o que em livros anteriores já surgia, a subversão da sintaxe como forma de discurso poético, com elipses e respectivas passagens bruscas de algo incompleto: ”Anotar agora o rumo da noite / à hora anuviada e silenciosa / aquela hora de os pescadores saírem / que como a noite pressentia / tu te olvidas dessa noite” (p. 45), o que também pode ser, em “tu te olvidas”, uma substituição do modo condicional pelo presente do indicativo, entendo-se o que do penúltimo verso como conjunção causal. No entanto, pouco interessa ser uma coisa ou outra, como veremos.


A manipulação da sintaxe vai até o uso de verbos de sentido pronominal que deixam de o ter , a negrito: "Esta árvore mexe mal / dá impressão que o almoço/ não cai bem (…) // mas a palavra arrepende / como arrepende o tempo mal ganho” (p. 33) , ou “O que mais vale e gosta / depois parte-se” (p. 44), entre outros exemplos. Não fosse HMM um profissional da Língua , o pouco avisado leitor iniciado de poesia diria que o livro estava cheio de erros. Por vezes, estas subversões atingem quase a iligebilidade, ainda a negrito (p. 57):

(…)

Podemos aldrabar juntos uma dor
a meias as alegrias estes dedos
e um grito ao canto longe daqui
reparamos os lábios na toada
a pele educada em mar tão chão
e à dobra calado rir devagar
que o dia arranca e acordamos os dois
é a borda um assobio a fraqueza vamos juntos
é isso tudo isso mas arranjado
um tambor pontapeia ali
que corpo mente e chora
é a perda não saber que boca se cala
que beijo morrer o mar a praia cheia
e cada pé nu pisando é verdade
não é o baque surdo que magoa
verdadeira a lâmina dura no rosto
ele defronte mais lento do espelho
leva sempre mais tempo e este


(…)

Para mim tenho que HMM, talvez subconscientemente, pretende, quando assume esta agitada linguagem em que as palavras são, tantas vezes, uma a uma, imagem, ideia ou sensação, não o reconhecimento dos leitores nos poemas que escreve, mas o reconhecimento do que HMM escreve nos poemas que os leitores lêem, distanciando-os, um pouco como a célebre técnica de Brecht e muito, indo eu neste raciocínio, como expressão atonal com que, conscientemente ou não, HMM traduz o seu tempo. Não é o primeiro poeta a que associo muita da música erudita contemporânea, que testemunha esta época dissonante.
 
Free counter and web stats