20.10.11

Lugano, poesia de Tatiana Faia

Lugano é uma surpresa e uma revelação acrescida por ser uma estreia em livro, a de Tatiana Faia (n. 1986), publicado pelas Edições Artefacto e apresentado a público em Lisboa, no passado dia 15 deste mês de Outubro.

Sem me preocupar mais com inícios canónicos, transcrevo de imediato o primeiro verso do livro:

«A chuva pousa de novo as mãos sobre os vidros»

É como que um verso fundador da generalidade dos que compõem os poemas de Lugano, um verso perfeito com sabor clássico, numa poesia inequivocamente contemporânea. Além da imagem que o verso inteiro encerra, cuja qualidade e vibração inaugural se vão reencontrar nos poemas do livro, encontramos com frequência um ritmo marcado por palavras curtas, monossílabos, dissílabos, menos trissílabos e menos ainda palavras de maior extensão, o que lhes confere o dito sabor. Há ainda, no geral, a musicalidade que o ritmo acompanha, marcada neste verso por um tom baixo, fechado, de vogais e ditongos, em sincronia com a imagem crepuscular da chuva a escorrer nos vidros. Também a aliteração oculta da fricativa V em chuva, novo, desvelando-se na palavra final vidros, contribui, com grande discrição, para a musicalidade do exemplo que encontrei para abordar o todo.

Noutro aspecto, a ausência praticamente total de pontuação, bem como a divisão da maioria dos poemas em estrofes por numeração romana (em contraponto com a linguagem poética, contraponto que me parece propositado), têm a virtude de unir a leitura, o que talvez não sucedesse tanto com a pontuação e a forma de divisão habitual, digamos assim. O que se justifica, concernindo-me eu à ausência de pontuação, por a poesia de Lugano ser suficientemente clara nas quebras de sentido, de modo a poder negar-se com firmeza a presença da tão desentendida multiplicidade de significados, a que não poucos recorrem (ou de que se socorrem…), com a prestimosa falta de pontuação e de palavras com origem numa abstracção meramente individual, quando não aleatórias.

Foi para vincar estas qualidades, cada vez mais raras, que assim abri a minha análise de leitura e por me terem sido logo o princípio da surpresa. E nessas qualidades contêm-se os assuntos do livro num todo uno, que também o é na arrumação dos poemas.

Acresce a atracção que a obra exerce na leitura. Poderia, enganosamente e por poemas dela, classificar Lugano como um livro de poesia sobre destinos de viagens. Em verdade, é-o do mundo com que a autora se encontra nos poemas, sem que no entanto deixe de discorrer sobre cidades e sítios por onde andou, expressos ou não, desde uma quotidiana Lisboa:


«de verdade não pertenço à beleza fixa das coisas
sou só um elo na corrente que prende a noite
ao seu pedestal a mão fechada sobre o papel
juntos atravessámos as moradas da noite fomos
os habitantes pacatos dessas paredes escutei
de amigos o riso entre cigarros em bares que
placas não anunciam em ruas discretas que
só existem em lisboa às três da manhã escutei
o seu riso como um murmúrio de rio em cuja
corrente nos perdemos nem a notícia da ínfima
pegada na margem tomei parte em conversas que
não figurariam no guião de nenhum filme lucrativo» 1

a uma longínqua Istambul:

«e vi em pleno dia a clareza dos rostos
a que nunca mais poderei dar um nome
sei que também para ti a vitória
hesitou em todas as esquinas
em todas as ruelas habitadas por gatos vadios
e rapazes jogadores de bola
em cada pequena troca ou concessão
em cada larga avenida atravessada na pressa
de que o semáforo não tornasse ao vermelho» 2 ,

juntamente com Lugano, Naxos, Pompeia, Milão, Alexandria, Lisboa, La Valleta, Paros, Siracusa, Atenas, Roma e Jerusalém, como títulos de poemas, segundo o índice; Palermo e de novo Lisboa no corpo de duas composições, aqui enumero de cor; e ainda referências urbanas de cidades não nomeadas.

É visível a predilecção da autora por exteriores (há a razão óbvia das viagens. Pode não se repetir em livros futuros), pela casa, por quartos de passagem ou não, por janelas e mesas, por areais, chuva e vento, para meditar poeticamente não tanto sobre eles, quanto da poeta consigo mesma nesses lugares e circunstâncias e com o outro ou outros, utilizando para si, muito maioritariamente, a segunda pessoa do singular e por vezes a do plural como forma de distanciamento pessoal e de tratamento.

A par disto, há a alusão a mitos e a locais da Antiguidade Clássica, longe de ressonâncias românticas, por vezes recordações de leituras «pensava distraidamente um pedaço de pão/ vinho misturado com água» 3, o vinho das hecatombes gregas, ou este trecho do belo poema Paros:

«longa noite no manto da cidade sobre
os ombros estendido algo que está
sobre a mesa uma caneta
esquecida numa lata de chá um livro
um copo vazio na janela coada luz de
azul e prata te traz seguro pela raiz
dos cabelos assim mais uma vez
fitarás a aurora de homero, a de róseos
dedos que em pétalas as horas entreabrem (…)» 4

As referências surgem também como comparações de apoio, por vezes significantes no contexto do poema: «avançamos pela cidade como Ulisses/ por entre os campos de asfódelos» 5, ou «e aos poucos fôssemos sendo o que todos os homens são// semelhantes àquele deus bifronte que sempre apontando/ em imperfeitos gestos duas coisas tão opostas» 6; ou então por simples associação com o presente: «ariadne em naxos instantes antes de acordar/ não sabe que haverá sempre uma imagem/ que sirva a definição dos nossos dias que seja útil / como linguagem que tudo perdido haverá sempre/ uma imagem que nos defenda (…)» 7,  ou «a rapariga vista no fresco de pompeia/ na mão esquerda segurava contra/ o lábio o estilete e na direita pequenas/ tábuas de madeira por um laço verde atadas (…)// este era também o tempo em que guardavas/ no bolso interior do casaco um desses pequenos/ espelhos de tampa verde e amendoeiras em flor/ estampados oráculos de bolso com que/ as mulheres por vezes consultam o rosto» 8. São introduções cultas, originadas pela memória da beleza de um mundo antigo extinto, da sua arte, que assim se mantém presente, sem idealismos que não reflectem  nem a realidade daquele tempo, nem a deste. Não querendo ser exaustivo, as referências com sentido metafórico surgem raramente. Encontrei duas, a de Faetonte 9, em This Fabrication Built of Autumn, e a de Electra no final de Morning Becomes Electra 10, e se, por descuido da memória, houver outras, serão tão sem importância que não beliscam a hegemonia das formas de abordagem citadas antes, o que confirma a marca do tempo actual, pós-moderno, de que este livro é um bom exemplo, as viagens, as alusões cultas, as epígrafes, três títulos em inglês 11, as expressões latinas com ligação à Roma clássica, as referências a filmes, que curiosamente dão título, em italiano, ao primeiro e ao último poema do livro 12, sem que sejam ecfrásticos, a versos e a poetas e, last but not least, o debater-se do sujeito poético com as suas próprias circunstâncias e as do que e de quem a rodeiam nas suas relações de vida, aqui com uma diferença do panorama mais comum: não se sente a penumbra do desencanto que atravessa o nosso tempo poético, há um permanente ir e voltar das contradições, enfrentado com serena claridade, já longe porém da luz moderna emanada de um tempo de esperança, estou a lembrar-me de Kavafis, de Elytis e de Sophia, entre outros.

Trata-se de um livro que se torna múltiplo e completo, como efeito dos diversos vectores que tecem uma espécie de rede que o contém na totalidade e o fecha numa só bloco: a perfeição formal, a serenidade e o prazer que se colhe da leitura, devido ao conhecimento e maneio da ductilidade da Língua que se percebem nos poemas (hoje coisa pouco frequente), bem como a música dela nos seus sons; as imagens vivas, não importadas; o tema das cidades e lugares, tratado de um ângulo que, não sendo novo, o torna mais atraente e lhe confere acrescida densidade, isto é, o sujeito poético está sempre em relação com o outro ou os outros, sem deixar de estar com os lugares; aqui e além, um lirismo fresco e contido; por fim, o lado culto das referências em muitos dos seus poemas, que eleva o livro, o complexifica e faz girar a memória em todas as direcções, quando não nos põe em busca do que nela se deliu ou que porventura não conhecemos. 

Lugano é uma surpresa excelente, uma bela estreia e, o que é muito mais, um vento fresco na modorra dos reis que passam nus.


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[1] Sirenes, I, p. 67
[2] Istambul, VI, p. 37
[3] Morning Becomes Electra, p. 12
[4] Paros, VI, p. 66
[5] This Fabrication Built of Autumn, III, p. 26
[6] Jano Bifronte, p. 14
[7] Naxos, VI, p. 31
[8] Pompeia, I e II, p. 40
[9] VI, p. 28
[10] p. 13
[11] Morning Becomes Electra, provém da peça de teatro homónima de Eugene O’Neil; This Fabrication Built of Autumn, já em nota, tem origem em parte de um verso do poema Sub Mare, de Erza Pound,, e Brisk Weather, retirado do romance Justine, de Lawrence Durrel, aliás como mostram as epígrafes dos poemas.
[12] Una Giornata Particolare, filme de 1977, com realização de Ettore Scola, e Estate Violenta, realizado por Valerio Zurlini em 1959, que dão título aos poemas da p. 7 e 88, respectivamente.
 
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