O
texto de uma peça de teatro exige um modo diverso de ler do que aquele que usamos
para a narrativa de ficção. Como em outras épocas literárias, na dramaturgia moderna,
que abrange o pós-modernismo (cuja parte final, política e socialmente, estamos
a percorrer, passe o aparte), sucede poder ser lida como poesia lírica, digamos assim. Ao lermos,
por exemplo, 4:48 Psychosis, de Sarah
Kane, cuja única personagem não nomeada é a própria dramaturga, ou a A Última Fita de Krapp, de Samuel
Bekett, duas peças, dois monólogos, estamos a ler poesia. Não já um poema, com
as suas especificidades, mas pode dizer-se que estamos a ler poesia em prosa (e
não prosa poética, coisa que muito se confunde). Com Restos. Interiores. passa-se o mesmo, uma peça, três monólogos
independentes e intensamente poéticos.
Esta
minha opinião não tem a ver com o pensamento de Hegel, que dava ao
teatro do seu tempo a posição cimeira, em relação às outras artes. É algo muito
simples e sem metafísicas. Cinjo-me tão-só aos meios de que hoje o encenador
dispõe para conseguir uma linguagem muito mais ampla do que a da escrita, que vão
desde a parafernália mecânica e digital ao uso de todas as artes, Cinema (filme
e vídeo), Fotografia (slide), Artes plásticas, incluindo instalações (a própria
encenação de actores é, momento a momento, como que uma instalação móvel[1]),
Música, Dança, Literatura, Arquitectura (cenários), Design, Arte Digital com os
seus avanços enquanto verdadeira nova arte e possibilidade de projecção em cena.
Esta
descrição prévia pareceu-me necessária para melhor se compreender o resto do
presente parágrafo. Pois bem, enquanto lia e a seguir a ter lido Restos. Interiores. fui montando e
montei a minha própria encenação, de um modo vago como é óbvio, mas com linhas
fundamentais, usando alguns daqueles meios e criando, cenicamente no meu
cérebro, um evoluir dos monólogos entre si. Esta atitude, na leitura de uma
peça, permite obter por um lado o máximo que ela, por nosso intermédio, pode
dar-nos; e, por outro, o que de nós podemos dar a ela. A vaga encenação que
cada um de nós idealiza não será de certeza a melhor, longe disso, mas
permite-nos passar as grandes limitações da escrita em relação à linguagem
dramática total.
Posto
isto, tenho a dizer, em defesa de tamanhos prolegómanos, que não é uso darem-se
impressões críticas aos textos dramáticos, mas à representação da peça, aqui,
sim, com o texto que lhe serviu de base. E o que fiz foi imaginar uma encenação
privada minha, para melhor poder discretear acerca do que li.
Restos. Interiores. foi representada
em 2002, no âmbito do Festival de Artes de Rua, de Palmela, e foi encenada pelo
próprio autor, aproveitando as ruínas de um prédio numa travessa da vila. Cumpriu-se
então, pela primeira vez, o seu destino como peça de teatro. Porque uma obra
dramática resolve-se como arte na sua representação, diante de um público ou mesmo
ainda no primeiro ensaio completo sem espectadores, apenas com os membros do
grupo teatral, tal como a poesia e a narrativa de ficção só se realizam com o
seu primeiro leitor, e o mesmo se passa com as demais artes, com excepção do
cinema, cuja equipa tem a prorrogativa do grupo teatral. E quando me refiro ao
primeiro leitor / espectador / visionador, refiro-me a quem usufrui a Arte, no
sentido de apropriação e interpretação que quero dar-lhe.
Restos. Interiores. é uma peça
constituída pelos monólogos de três mulheres, as Enlutadas, a 1, a 2 e a 3, sem nada que as faça interagir entre elas.
São pois independentes umas das outras, no entanto com algo que as liga e que
nos liga de um modo ou de outro. A morte. A morte de seres queridos. A primeira
chora o seu amante berbere, trabalhador da construção de uma barragem em
Portugal, morto num acidente de trabalho e que o padre impediu de ser marido dela. À Enlutada 2 morre o noivo, militar
português no Kosovo, com quem nunca se deu ao amor. A terceira,
tóxico-dependente portuguesa, é engravidada por outro tóxico-dependente, numa
relação casual. Nascem-lhe quatro gémeos com menos de seis meses, e morrem
todos.
São
três longos monólogos, escritos em linguagem poética, entrecortada pela acção
que a poesia também possui, e por uma linguagem meramente factual que se
mistura àquelas e, no todo, é por elas absorvida. Recolho com rapidez três
exemplos da linguagem poética que mencionei, um por cada personagem:
“Tomaste o meu corpo e foi por ele que
chegaram a ti as primeiras palavras da minha língua materna, as que dizem do
amor e dos lugares do corpo por onde o amor se dá e se recebe (...)”; “à minha
frente o mar onde nos conhecemos no último inverno. Agora tem a calma do verão
(…) Qual é a cor dos teus cabelos? perguntaste nessa noite, e eu disse-te para
esperares pelo sol nascer” “Pequeninos. Os meus quatro meninos saídos do meu
ventre ao fim de vinte e quatro semanas e três dias. Quem foi que não quis
esperar mais? Vocês ou eu? Ou vocês por mim? Ou eu por vocês?”
Os
três monólogos, de forte tensão e, ao mesmo tempo, de grandeza trágica, fizeram-me
lembrar, na sua inquestionável contemporaneidade, a tragédia grega clássica,
sobretudo de Eurípedes, e pode ter sido essa a intenção de Carlos Alberto
Machado, tanto mais que é também encenador, e dos encenadores contemporâneos é
bom que se espere subversão (consequente, pois já deparei com grandes
disparates nesse campo[2]).
Ora quem subverte um texto alheio, mais depressa subverte um seu. E as três Enlutadas representam uma relação tensa, social
e politica, com a polis, causas
centrais das tragédias gregas, fazendo o autor um breve alusão a essas
circunstâncias, ao revelar o motivo das mortes que cada uma das Enlutadas chora.
Por
outro lado, temos um coro que, na tragédia clássica, entra em cena depois do
prólogo e se mantém durante a representação toda, e em Restos. Interiores. entra logo de início, coro confirmado na muito
hábil figuração que é entregue às três actrizes intérpretes das Enlutadas, enquanto actrizes, mantendo
assim, simbolicamente, o coro ao longo da peça.
Parece-me
igualmente muito clara a profundidade trágica das personagens, a tensão que os
seus monólogos originam. Esta tensão é conseguida, em parte, pela linguagem
poética, levada ao extremo da angústia humana, que, em todo o seu rigor, não
admite sombra de melodrama. Mas também pela linguagem dramática, factual que,
com a poética, forma um densa unidade de expressão. No entanto, isso não
chegaria. O desenrolar dramático vale-se da oposição entre as personagens para
que viva e evolua em palco e, neste caso, temos monólogos separados, estranhos
entre si, e, aparentemente, uma só personagem por monólogo. Na verdade, há mais
personagens, não nomeadas como tal no texto. Uma delas é a morte, que paira sem
mais remédio sobre as três mulheres, fazendo de novo lembrar a tragédia
clássica grega. As outras são os mortos de cada uma das Enlutadas, com que as três personagens quase dialogam, monologando
e conseguindo-se assim uma forte contradição, que vai dar vida intensa à
representação. A peça, à semelhança ainda das tragédias gregas (As Bacantes, de
Eurípedes, por exemplo), termina com o coro bastante activo, representado agora
pelas próprias Enlutadas, que afinal
são as actrizes do coro da abertura.
Restos. Interior surpreendeu-me na sua constante e densa intensidade. Trouxe-me à memória
as tragédias gregas, que vi representadas e que desde a adolescência li e reli,
e ao mesmo tempo o conforto de, neste caso, como noutros, saber que nada de
sólido nasce do ar, mas sim das raízes de quem nos antecedeu e permanecerá.
Gostaria bastante de assistir à representação de Restos. Interiores., e mais ainda
de a encenar, se tivesse seguido pela arte de que mais gosto e, para mim, até me
convencerem do contrário, a maior entre todas na sua linguagem total em cena.
[1]
Estou a lembrar-me da representação de O
Ensaio da Cegueira, pelo grupo de teatro O Bando, com dramaturgia e encenação de João
Brites. O rigor da encenação de actores e as cores do guarda-roupa são talvez o
meu melhor exemplo de uma instalação
viva, que muda e se torna Arte momento a momento.
[2] Assisti,
fora do país, a uma peça de Shakespeare, Macbeth, interpretada por uma
companhia romena. O primeiro acto não teve uma fala. Foi todo preenchido por
pantomima. O segundo acto ia, no princípio, pelo mesmo caminho, mas a meio já Shakespeare
obrigara o encenador a meter falas, para no final e nos três actos seguintes não
ter havido sequer uma pantomima. À saída, apeteceu-me ir dizer ao encenador: “Estás
a ver no que dão as tuas tontices? O Shakespeare meteu-te nos carris como um
poltrão.”