24.5.12

"Restos. Interiores.", teatro de Carlos Alberto Machado



O texto de uma peça de teatro exige um modo diverso de ler do que aquele que usamos para a narrativa de ficção. Como em outras épocas literárias, na dramaturgia moderna, que abrange o pós-modernismo (cuja parte final, política e socialmente, estamos a percorrer, passe o aparte), sucede poder ser lida como poesia lírica, digamos assim. Ao lermos, por exemplo, 4:48 Psychosis, de Sarah Kane, cuja única personagem não nomeada é a própria dramaturga, ou a A Última Fita de Krapp, de Samuel Bekett, duas peças, dois monólogos, estamos a ler poesia. Não já um poema, com as suas especificidades, mas pode dizer-se que estamos a ler poesia em prosa (e não prosa poética, coisa que muito se confunde). Com Restos. Interiores. passa-se o mesmo, uma peça, três monólogos independentes e intensamente poéticos.

No entanto, essa leitura, por si mesma, dá uma ideia muito incompleta do que se pode absorver dela, um pouco como o guião de um filme que seja arte, e não um subproduto de indústria, e digo um pouco, porque a encenação dramática não só exige, ou pode exigir, mais meios do que o Cinema, para alcançar o seu (dela) elevado poder de expressão e a vivência do seu calor humano, mas também porque considero que a encenação contemporânea leva o Teatro para o topo das artes, enquanto possibilidade máxima de linguagem.
 
Esta minha opinião não tem a ver com o pensamento de Hegel, que dava ao teatro do seu tempo a posição cimeira, em relação às outras artes. É algo muito simples e sem metafísicas. Cinjo-me tão-só aos meios de que hoje o encenador dispõe para conseguir uma linguagem muito mais ampla do que a da escrita, que vão desde a parafernália mecânica e digital ao uso de todas as artes, Cinema (filme e vídeo), Fotografia (slide), Artes plásticas, incluindo instalações (a própria encenação de actores é, momento a momento, como que uma instalação móvel[1]), Música, Dança, Literatura, Arquitectura (cenários), Design, Arte Digital com os seus avanços enquanto verdadeira nova arte e possibilidade de projecção em cena.

Esta descrição prévia pareceu-me necessária para melhor se compreender o resto do presente parágrafo. Pois bem, enquanto lia e a seguir a ter lido Restos. Interiores. fui montando e montei a minha própria encenação, de um modo vago como é óbvio, mas com linhas fundamentais, usando alguns daqueles meios e criando, cenicamente no meu cérebro, um evoluir dos monólogos entre si. Esta atitude, na leitura de uma peça, permite obter por um lado o máximo que ela, por nosso intermédio, pode dar-nos; e, por outro, o que de nós podemos dar a ela. A vaga encenação que cada um de nós idealiza não será de certeza a melhor, longe disso, mas permite-nos passar as grandes limitações da escrita em relação à linguagem dramática total.
 
Posto isto, tenho a dizer, em defesa de tamanhos prolegómanos, que não é uso darem-se impressões críticas aos textos dramáticos, mas à representação da peça, aqui, sim, com o texto que lhe serviu de base. E o que fiz foi imaginar uma encenação privada minha, para melhor poder discretear acerca do que li.

Restos. Interiores. foi representada em 2002, no âmbito do Festival de Artes de Rua, de Palmela, e foi encenada pelo próprio autor, aproveitando as ruínas de um prédio numa travessa da vila. Cumpriu-se então, pela primeira vez, o seu destino como peça de teatro. Porque uma obra dramática resolve-se como arte na sua representação, diante de um público ou mesmo ainda no primeiro ensaio completo sem espectadores, apenas com os membros do grupo teatral, tal como a poesia e a narrativa de ficção só se realizam com o seu primeiro leitor, e o mesmo se passa com as demais artes, com excepção do cinema, cuja equipa tem a prorrogativa do grupo teatral. E quando me refiro ao primeiro leitor / espectador / visionador, refiro-me a quem usufrui a Arte, no sentido de apropriação e interpretação que quero dar-lhe.

Restos. Interiores. é uma peça constituída pelos monólogos de três mulheres, as Enlutadas, a 1, a 2 e a 3, sem nada que as faça interagir entre elas. São pois independentes umas das outras, no entanto com algo que as liga e que nos liga de um modo ou de outro. A morte. A morte de seres queridos. A primeira chora o seu amante berbere, trabalhador da construção de uma barragem em Portugal, morto num acidente de trabalho e que o padre impediu de ser marido dela. À Enlutada 2 morre o noivo, militar português no Kosovo, com quem nunca se deu ao amor. A terceira, tóxico-dependente portuguesa, é engravidada por outro tóxico-dependente, numa relação casual. Nascem-lhe quatro gémeos com menos de seis meses, e morrem todos.

São três longos monólogos, escritos em linguagem poética, entrecortada pela acção que a poesia também possui, e por uma linguagem meramente factual que se mistura àquelas e, no todo, é por elas absorvida. Recolho com rapidez três exemplos da linguagem poética que mencionei, um por cada personagem:

 “Tomaste o meu corpo e foi por ele que chegaram a ti as primeiras palavras da minha língua materna, as que dizem do amor e dos lugares do corpo por onde o amor se dá e se recebe (...)”; “à minha frente o mar onde nos conhecemos no último inverno. Agora tem a calma do verão (…) Qual é a cor dos teus cabelos? perguntaste nessa noite, e eu disse-te para esperares pelo sol nascer” “Pequeninos. Os meus quatro meninos saídos do meu ventre ao fim de vinte e quatro semanas e três dias. Quem foi que não quis esperar mais? Vocês ou eu? Ou vocês por mim? Ou eu por vocês?”

Os três monólogos, de forte tensão e, ao mesmo tempo, de grandeza trágica, fizeram-me lembrar, na sua inquestionável contemporaneidade, a tragédia grega clássica, sobretudo de Eurípedes, e pode ter sido essa a intenção de Carlos Alberto Machado, tanto mais que é também encenador, e dos encenadores contemporâneos é bom que se espere subversão (consequente, pois já deparei com grandes disparates nesse campo[2]). Ora quem subverte um texto alheio, mais depressa subverte um seu. E as três Enlutadas representam uma relação tensa, social e politica, com a polis, causas centrais das tragédias gregas, fazendo o autor um breve alusão a essas circunstâncias, ao revelar o motivo das mortes que cada uma das Enlutadas chora.

Por outro lado, temos um coro que, na tragédia clássica, entra em cena depois do prólogo e se mantém durante a representação toda, e em Restos. Interiores. entra logo de início, coro confirmado na muito hábil figuração que é entregue às três actrizes intérpretes das Enlutadas, enquanto actrizes, mantendo assim, simbolicamente, o coro ao longo da peça.

Parece-me igualmente muito clara a profundidade trágica das personagens, a tensão que os seus monólogos originam. Esta tensão é conseguida, em parte, pela linguagem poética, levada ao extremo da angústia humana, que, em todo o seu rigor, não admite sombra de melodrama. Mas também pela linguagem dramática, factual que, com a poética, forma um densa unidade de expressão. No entanto, isso não chegaria. O desenrolar dramático vale-se da oposição entre as personagens para que viva e evolua em palco e, neste caso, temos monólogos separados, estranhos entre si, e, aparentemente, uma só personagem por monólogo. Na verdade, há mais personagens, não nomeadas como tal no texto. Uma delas é a morte, que paira sem mais remédio sobre as três mulheres, fazendo de novo lembrar a tragédia clássica grega. As outras são os mortos de cada uma das Enlutadas, com que as três personagens quase dialogam, monologando e conseguindo-se assim uma forte contradição, que vai dar vida intensa à representação. A peça, à semelhança ainda das tragédias gregas (As Bacantes, de Eurípedes, por exemplo), termina com o coro bastante activo, representado agora pelas próprias Enlutadas, que afinal são as actrizes do coro da abertura.

Restos. Interior surpreendeu-me na sua constante e densa intensidade. Trouxe-me à memória as tragédias gregas, que vi representadas e que desde a adolescência li e reli, e ao mesmo tempo o conforto de, neste caso, como noutros, saber que nada de sólido nasce do ar, mas sim das raízes de quem nos antecedeu e permanecerá.

Gostaria bastante de assistir à representação de Restos. Interiores., e mais ainda de a encenar, se tivesse seguido pela arte de que mais gosto e, para mim, até me convencerem do contrário, a maior entre todas na sua linguagem total em cena.



[1] Estou a lembrar-me da representação de O Ensaio da Cegueira, pelo grupo de teatro O Bando, com dramaturgia e encenação de João Brites. O rigor da encenação de actores e as cores do guarda-roupa são talvez o meu melhor exemplo de uma instalação viva, que muda e se torna Arte momento a momento.
[2] Assisti, fora do país, a uma peça de Shakespeare, Macbeth, interpretada por uma companhia romena. O primeiro acto não teve uma fala. Foi todo preenchido por pantomima. O segundo acto ia, no princípio, pelo mesmo caminho, mas a meio já Shakespeare obrigara o encenador a meter falas, para no final e nos três actos seguintes não ter havido sequer uma pantomima. À saída, apeteceu-me ir dizer ao encenador: “Estás a ver no que dão as tuas tontices? O Shakespeare meteu-te nos carris como um poltrão.”
 
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