Já escrevi neste blogue sobre António Cabrita, a propósito do seu livro de poesia Não se Emenda, a Chuva. Está aí descrita a sua actividade multímoda e a condição de escritor emigrado em Moçambique.
Desta vez, trata-se da colectânea de contos em título, todos de ambiência
moçambicana. Publicou-a este ano Companhia das Ilhas, uma nova editora que foi fundada, também este ano, por Carlos Alberto Machado no arquipélago
onde nasci. Hoje a distância permanece, mas não permanece a sua impossibilidade
e o seu silêncio. Uma ilha, neste caso a do Pico, já não é exclusivamente um
pedaço de terra cercado de mar e céu por todos os lados. Poderia sediar-se no
Corvo, que cumpria a função a que se propôs, editar géneros de difícil publicação,
poesia, teatro, conto, em livros de pequeno tamanho e preço, com uma qualidade
gráfica esmerada.
Mas passemos ao que vim. É logo deste jeito que começa o primeiro conto:
Mas passemos ao que vim. É logo deste jeito que começa o primeiro conto:
"A linguagem é traiçoeira mas permite-nos recortar o inexprimível e
contar como o Zibelina bateu com os ossos no céu. Embutido na transparência
azul. Bastou um tiro com uma carabina para caça grossa."
Não sei se por minha leitura
e, portanto, posterior enlace meu, se, de início, por intenção do autor, o
certo é que este primeiro parágrafo me parece conter a ironia que germinará, em
tons diversos, nos demais contos, mesmo os que tratam de casos de morte, curiosamente
o primeiro e o último na arrumação do livro. São inúmeros os exemplos do que
afirmo. Além da surpresa de tão saboroso começo, refiro duas ocorrências
da ironia a que aludo, estas bastam, mais seria povoar o texto de citações, o que só dá jeito a
quem escreva à linha e tenha de as preencher todas.
Um é o nome da personagem
central do belo conto Yes, We Can, Ulisse,
um nome tão saboroso como o caso de Zebelina que bateu com os ossos no céu. Ulisse é uma ironia bonacheirona, numa
história que ressuma empatia com a personagem central do conto, servindo-se o
autor da literatura do fantástico para lhe dar o final, caso único no livro.
Aquela ironia solidária transforma-se em solidadriedade com a explicação do
nome, que poderia ser apenas de Ulisses
no singular (o sintagma em itálico é meu), sabendo nós que os africanos de língua
portuguesa substituem muitas vezes o plural pelo singular. Não é o caso. É uma
descida ao fundo escuro da humanidade:
"Aos quatro meses da gravidez, moída pela pancada do pai, a mãe escreveu-lhe
e o grego respondeu-lhe numa linha:
“Chama-lhe Ulisses”. Com as lágrimas a mãe debotou o «ésse» final e ficou
Ulisse."
Esta descida ao gelo humano, de
convivência com a ironia, não é única no livro. É um jogo que talvez aligeire o
peso a uma leitura distraída, mas na leitura atenta funciona como funcionaria
o sarcasmo, de que o autor não se serve em todo o livro, provavelmente assim o
rodeando como excesso de denúncia.
A outra citação pertence ao
conto O Sagui e a Estrela de Cinema:
"Até o carácter dos realizadores, que hoje, com espalhafato, matavam e
esfolavam, e amanhã se desdobravam em sorrisos e gentilezas, numa rotação de 489 graus"
Não existe tal rotação em
geometria, e ao autor não bastou o máximo dos 360 graus para tornar a ironia suficientemente
mordaz, a ironia da reviravolta em imagem ridicularizante por caricatura, a
rotação e meia, mais nove graus, daqueles que já nem vendem a alma ao diabo,
nem sequer a hipotecam, porque a perderam ou nunca a tiveram.
O autor, no conjunto do livro,
assume em geral uma postura de bonomia arguta, mas não displicente perante o mundo que
narra. Pelo contrário, é visível, porque central, o interesse umas vezes
crítico, de outras caloroso e afectivo pelo humano, através do olhar da memória
recente e da imaginação com que cria, sem permitir concessões ao folclore do invulgar
fácil e sem a recusa de evitar descer aos últimos círculos do Inferno da
maldade da espécie, que é universal, e sempre espanta, sem que isso se torne no
dito folclore, ou passe por cima da realidade social e política que rodeia o
autor e o faz ser testemunha de uma sociedade que, como a portuguesa de
hoje, é espoliada herdeira de sonhos justos, depressa desviados por toda a espécie de arrivistas
e ladrões. No entanto, o autor não escreve segundo o discurso dos altifalantes ou
dos recados sub-reptícios dos mass media, mas no fluir independente da trama que
nenhum taxinomista poderia classificar dentro do estreito hemiciclo de metade
de uma bússola.
É uma prosa clara e viva, com o
brilho da súbita inventiva, vejam-se, entre outros exemplos, as hipálages “para amparar o busto da tristeza,”,
“de súbito, num congelamento, o grosso das pessoas calou-se”. Fazem-me
lembrar, noutro século, o “cigarro
pensativo” de Eça, mas também, enquanto figura de estilo, a própria ironia
acima referida dá vida e confere criatividade à prosa. Os parágrafos são em
geral pouco extensos, e os diálogos, equilibrados, em discurso directo ou
indirecto, usando neles, muito pontualmente, a fala urbana, creio que de
macondes:
“– Mbate, sou eu, o Artur… ya brada, tudo bem… e a cunhada como vai?... como?
Mulher é fogo… Mano, lhe telefono porque limpei o sebo a um traficas, o man tem
na mochila dois fetos de elefante…”