Parece-me
cada vez mais comum a poetas surgidos a partir do início do século XXI, ou um
pouco antes, quererem-se testemunho deste tempo subvertido. Por isso, o que se
põe de fundamental para individualizar uma voz é a ética que a informa, a
experiência que se originou como matéria de poesia e a estética que suporta e
realça a ética, já muito longe do conceito hegliano. De um modo prático,
trata-se de distinguir o que se quer canónico do que nos agarra por todos os
lados do poema, a convicção, necessariamente oriunda da experiência moral do
poeta, os aspectos formais do poema e a capacidade inusitada da linguagem que
nos surpreende e é substância sinérgica da revelação ética e da liberdade
criativa.
Luís
Pedroso (n. 1977) está neste caso pouco vulgar, com o livro de poemas Romance Ou Falência, saído este mês com
a chancela da Edições Artefacto.
Depois
de lido, abro o livro à sorte e parece ter sido de propósito calhar-me logo um
pequeno poema revelador. Serve-me de exemplo precioso do carácter não canónico da
poesia do autor. Não é de copos que fala, de decadentes balcões por onde se
arrasta a vida desgraçada do fado lusitano. Distancia-se e faz-me recordar Omar Khayyām e os seus rubaiyat sobre vinho.
“O GRATO BEBEDOR
Bebo este vinho porque o
desconheço
Traz-me paz seu silvo de
sangue escuro
Salino e vivo e doce e quente e espesso
Vai para ele o meu voto
moribundo”
Pode
parecer evidente o desencanto do último verso, embora os três versos anteriores
levem, a meu ver, a uma interpretação menos linear (no sentido de fora do
hábito de leitura, em que ao virar de cada página de certa poesia se encontra a
metáfora, perfilada), com a definição do vinho próxima das palavras de um provador,
que o poeta soube com leveza e segurança de ritmo levá-la para o campo poético “Traz-me paz seu silvo de sangue escuro /
Salino e vivo e doce e quente e espesso”. O último verso “Vai para ele o meu voto moribundo”encerra,
quanto a mim, uma declaração quase à letra do seu voto, um voto de vencido numa
sessão de prova de vinhos, pois diz: “Traz-me paz seu silvo(…)”. Que silvo é
este? Para mim é o silvo que os lábios fazem quando se aspira o ar com que se
busca avivar os aromas retronasais na prova de boca de um vinho, desculpem-me os
pormenores especializados que podem parecer uma bizarria interpretativa, no
entanto calhou o acaso ter-me permitido aprendê-los e cultivá-los. Porque ― e é
isto que interessa, bem mais do que qualquer interpretação ― quem louva assim o
vinho não se sente nas vascas da agonia, nem perfilha nenhuma obediência
canónica aos ditames epocais da infelicidade individual, em que as dores e
falhanços do narrador poeta e o próprio poeta é que importam (a velha questão
da aura de Baudelaire, cuja queda em poesia de hoje chegou a ser muito aplaudida
e favoravelmente comentada, quando o que se pretendia era reavê-la e mantê-la,
sim, mas numa suposta invisibilidade). Daí que nos deparemos com uma poesia
muito viva em que as imagens descritivas da realidade se constituem com frequência
em chaves claras da semântica da linguagem, e muito raramente – uma vez só, e se eu não tiver treslido – numa imagem metafórica próxima do
surrealismo, e no entanto com um timbre novo e claro no que nos faz sentir, mas
não compreender cabalmente: “ ‘Fim / do Mundo’ ― / expressão que há muito / perdeu o perfume ameaçador // O fim do mundo é um planalto / de
onde se pesca à linha”. No entanto, pergunto-me agora, se os versos sublinhados
não terão a ver com um putativo aspecto lúdico, no qual o poeta recolhesse o
seu próprio gozo de criar. Não escreveu é
um planalto onde se pesca à
linha, porque o fim do mundo poderia ser também isso, escreveu O fim do mundo é um planalto / de
onde se pesca à linha”. Ora é impossível pescar do cimo de um
planalto, rios e ribeiros, lagos e lagoas pertencem ao dito planalto e não há
planalto que acabe no mar, ainda por cima verticalmente, o que admitiria a
locução de onde e se estivesse a pescar
à linha a x centenas de metros de altitude. No entanto, essa impossibilidade
também pode de facto significar o fim do mundo, por ser precisamente uma
impossibilidade definitiva e mesmo trágica. Em face destas minhas variações de
interpretação, que escrevo ao correr do teclado, Romance ou Falência é um livro cujos poemas é preciso reler, uma
tarefa que iguala em prazer o da primeira leitura.
Uma
das características da poesia de Luís Pedroso neste livro – o único que conheço
- é expressar sem peso morto e maçante o que pode ser pesado, sem alienar as
circunstâncias do nosso tempo, é o que a maioria dos poemas da segunda e última
parte do livro nos dá. “Do meu país sobra
uma carcaça linda, / e não é certo
que tenha passado por mesa de autópsia / ou pelos dedos delicados do taxidermista, / ossos chupados fora e dentro, / já
que até as larvas são ricas em proteína // Ouve-se um ruído rouco de ignição, / ardem as últimas beatas da ruína / e a estação da cereja chega de novo ao fim // Algo está em marcha, mas ninguém sabe, / ó Plutarco, da maligna alma do mundo, / se é novo credo ou ameaça, // (…).
Ainda
transcrevo um poema, haveria bem mais para o substituir, mas faço-o pelo gosto
da ironia do título em castelhano, com que o poeta se brinda e sublinha o seu
estado na altura:
“NO PASA NADA
Não se passa nada,
como se cinco minutos
depois do pequeno-almoço
tivesse entrado humidade
para a clepsidra
e eu saísse apavorado de
uma biblioteca,
alegando silêncio em
excesso
Desperdiço as minhas
tardes na hemeroteca,
no arquivo de fotografia,
à procura das minhas
[ruas,
[ruas,
dos becos e baldios
abandonados,
pedregulhos sobre os
auxiliares de memória,
e agora estar vivo é um
estrangeirismo
Não se passa nada,
e o poema é um fragmento,
um avolumar de
[palavras
[palavras
Penso na dignidade de não
ter nada
e saio à rua limpo,
radiante de ignorância”
Da
leitura fica o gosto de uma poesia que tem uma luz clara de novidade salvífica
do muito que hoje se faz, o rigor de escrita, a postura ética e moral face ao
nosso tempo, a independência que não estamos habituados a encontrar. Talvez
tenha sido por esta última que só há pouco tenha descoberto Luís Pedroso e o seu
Romance ou Falência. Uma virtude com os custos e alegrias de quem não quer "cunhar moeda".