29.7.14

Romance ou Falência, de Luís Pedroso



 

 Parece-me cada vez mais comum a poetas surgidos a partir do início do século XXI, ou um pouco antes, quererem-se testemunho deste tempo subvertido. Por isso, o que se põe de fundamental para individualizar uma voz é a ética que a informa, a experiência que se originou como matéria de poesia e a estética que suporta e realça a ética, já muito longe do conceito hegliano. De um modo prático, trata-se de distinguir o que se quer canónico do que nos agarra por todos os lados do poema, a convicção, necessariamente oriunda da experiência moral do poeta, os aspectos formais do poema e a capacidade inusitada da linguagem que nos surpreende e é substância sinérgica da revelação ética e da liberdade criativa.

Luís Pedroso (n. 1977) está neste caso pouco vulgar, com o livro de poemas Romance Ou Falência, saído este mês com a chancela da Edições Artefacto.

Depois de lido, abro o livro à sorte e parece ter sido de propósito calhar-me logo um pequeno poema revelador. Serve-me de exemplo precioso do carácter não canónico da poesia do autor. Não é de copos que fala, de decadentes balcões por onde se arrasta a vida desgraçada do fado lusitano. Distancia-se e faz-me recordar Omar Khayyām e os seus rubaiyat sobre vinho.

O GRATO BEBEDOR

Bebo este vinho porque o desconheço
Traz-me paz seu silvo de sangue escuro
Salino e vivo  e doce e quente e espesso
Vai para ele o meu voto moribundo

Pode parecer evidente o desencanto do último verso, embora os três versos anteriores levem, a meu ver, a uma interpretação menos linear (no sentido de fora do hábito de leitura, em que ao virar de cada página de certa poesia se encontra a metáfora, perfilada), com a definição do vinho próxima das palavras de um provador, que o poeta soube com leveza e segurança de ritmo levá-la para o campo poético “Traz-me paz seu silvo de sangue escuro / Salino e vivo e doce e quente e espesso”. O último verso “Vai para ele o meu voto moribundo”encerra, quanto a mim, uma declaração quase à letra do seu voto, um voto de vencido numa sessão de prova de vinhos, pois diz: “Traz-me paz seu silvo(…)”. Que silvo é este? Para mim é o silvo que os lábios fazem quando se aspira o ar com que se busca avivar os aromas retronasais na prova de boca de um vinho, desculpem-me os pormenores especializados que podem parecer uma bizarria interpretativa, no entanto calhou o acaso ter-me permitido aprendê-los e cultivá-los. Porque ― e é isto que interessa, bem mais do que qualquer interpretação ― quem louva assim o vinho não se sente nas vascas da agonia, nem perfilha nenhuma obediência canónica aos ditames epocais da infelicidade individual, em que as dores e falhanços do narrador poeta e o próprio poeta é que importam (a velha questão da aura de Baudelaire, cuja queda em poesia de hoje chegou a ser muito aplaudida e favoravelmente comentada, quando o que se pretendia era reavê-la e mantê-la, sim, mas numa suposta invisibilidade). Daí que nos deparemos com uma poesia muito viva em que as imagens descritivas da realidade se constituem com frequência em chaves claras da semântica da linguagem, e muito raramente – uma vez só, e se eu não tiver treslido – numa imagem metafórica próxima do surrealismo, e no entanto com um timbre novo e claro no que nos faz sentir, mas não compreender cabalmente: “ ‘Fim / do Mundo’ ― / expressão que há muito / perdeu o perfume ameaçador // O fim do mundo é um planalto / de onde se pesca à linha”. No entanto, pergunto-me agora, se os versos sublinhados não terão a ver com um putativo aspecto lúdico, no qual o poeta recolhesse o seu próprio gozo de criar. Não escreveu é um planalto onde se pesca à linha, porque o fim do mundo poderia ser também isso, escreveu O fim do mundo é um planalto / de onde se pesca à linha”. Ora é impossível pescar do cimo de um planalto, rios e ribeiros, lagos e lagoas pertencem ao dito planalto e não há planalto que acabe no mar, ainda por cima verticalmente, o que admitiria a locução de onde e se estivesse a pescar à linha a x centenas de metros de altitude. No entanto, essa impossibilidade também pode de facto significar o fim do mundo, por ser precisamente uma impossibilidade definitiva e mesmo trágica. Em face destas minhas variações de interpretação, que escrevo ao correr do teclado, Romance ou Falência é um livro cujos poemas é preciso reler, uma tarefa que iguala em prazer o da primeira leitura.

Uma das características da poesia de Luís Pedroso neste livro – o único que conheço - é expressar sem peso morto e maçante o que pode ser pesado, sem alienar as circunstâncias do nosso tempo, é o que a maioria dos poemas da segunda e última parte do livro nos dá. “Do meu país sobra uma carcaça linda, / e não é certo que tenha passado por mesa de autópsia / ou pelos dedos delicados do taxidermista, / ossos chupados fora e dentro, / já que até as larvas são ricas em proteína // Ouve-se um ruído rouco de ignição, / ardem as últimas beatas da ruína / e a estação da cereja chega de novo ao fim // Algo está em marcha, mas ninguém sabe, / ó Plutarco, da maligna alma do mundo, / se é novo credo ou ameaça, // (…).

Ainda transcrevo um poema, haveria bem mais para o substituir, mas faço-o pelo gosto da ironia do título em castelhano, com que o poeta se brinda e sublinha o seu estado na altura:

“NO PASA NADA

Não se passa nada,
como se cinco minutos depois do pequeno-almoço
tivesse entrado humidade para a clepsidra
e eu saísse apavorado de uma biblioteca,
alegando silêncio em excesso

Desperdiço as minhas tardes na hemeroteca,
no arquivo de fotografia, à procura das minhas 
                                                     [ruas,
dos becos e baldios abandonados,
pedregulhos sobre os auxiliares de memória,
e agora estar vivo é um estrangeirismo

Não se passa nada,
e o poema é um fragmento, um avolumar de 
                                              [palavras
Penso na dignidade de não ter nada
e saio à rua limpo, radiante de ignorância”


Da leitura fica o gosto de uma poesia que tem uma luz clara de novidade salvífica do muito que hoje se faz, o rigor de escrita, a postura ética e moral face ao nosso tempo, a independência que não estamos habituados a encontrar. Talvez tenha sido por esta última que só há pouco tenha descoberto Luís Pedroso e o seu Romance ou Falência. Uma virtude com os custos e alegrias de quem não quer "cunhar moeda".
 
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