22.1.19

Uma leitura em forma de carta

 20 de Outubro de 2018

Caro Helder G. Cancela

 Nunca fui leitor nem mesmo cinéfilo de ficção científica ou da sua oposta no tempo. Livro, nunca tinha lido nenhum, salvo na adolescência os de Júlio Verne, e filme só vi Blade Runer, que está no meu lote de filmes de culto preferidos. Tenho há muito para ver 2001- Odisseia no Espaço, de S. Kubrick, que aparece nos primeiros cinquenta dos cem melhores filmes da história do cinema, na lista dos Cahiers du Cinéma, e ainda não o vi porque duvido que me atraia e não quero pô-lo definitivamente de lado. Serve isto para dizer que cheguei iliterato ao género de ficção a que pertence o seu romance A Terra de Naumãn. Só por semelhança, o coloco na ficção científica, apesar de situar-se nos antípodas do tempo hoje futuro, por semelhança, escrevi, e também por desconhecimento de haver ou não classificação para um livro cuja acção decorre muito antes da Pré-História.

Tive três reacções principais na leitura do seu livro. A primeira foi que era um facto decorrente do assunto, do enredo e das personagens tomar os sáurios por humanos, na leitura e penso que durante a escrita do romance. Sem esta conversão, tenho para mim que nada do que fora escrito seria narrado e, portanto, nada haveria para ler. Devido ao interesse que a trama me suscitou, não apenas nem principalmente pelo uso do suspense e das viagens, bem mais pelo tema a que, no entanto, junto as deslocações de Alva ao mar, por serem muito importantes para as aspirações daquela sociedade em construção, devido à trama que me agarrou, ia dizendo, estranhei sempre como que a lembrança dada a espaços no texto de que eram sáurios, porque para mim eram homens, apesar de estes terem surgido sessenta milhões de anos depois do tempo da narrativa. Os ovos, de certo modo omnipresentes, para mim não eram ovos, mas o futuro, o Futuro com maiúscula, o grande objectivo dos naumans e a sua grande generosidade.

Outra reacção, e a mais importante, é que eu estava, pela leitura e pelos princípios morais e sociais, dentro daquela sociedade exemplar, na qual sobressai o carácter das personagens, o controlo rigoroso do poder para evitar o seu abuso, o dever público, a democracia real que une a sociedade, a democracia que poucos conhecem e a que os justos aspiram, os restantes limitados pela ignorância induzida pelos diversos poderes que os naumans recusam nas suas escolhas, acções, comportamento cívico e consciência de fundadores de uma nação (que é do que o romance trata). Durante as primeiras duzentas e trinta e três páginas de texto, num total de duzentas e setenta e nove, decorre uma epopeia que a humildade e a noção do dever perante o interesse colectivo afastam das epopeias que conhecemos. É uma epopeia guiada pela ética e pela moral (e não pela força ou pela aventura), em que até um prisioneiro tem um estatuto de direito que muito honraria as sociedades de hoje. É uma epopeia moderna, do nosso tempo, que me agarrou como, este ano, só a releitura de A Peste o fez (lida nos anos sessenta, foi como se a tivesse lido a primeira vez). E eis-me de volta à primeira reacção, para mim os sáurios tout court não estão no livro, fazem parte de uma grande metáfora que mostra ser possível, ou apenas sê-lo através do sonho, a existência de uma sociedade justa e bela devido ao seu povo consciente. Não há no livro, ao contrário do que se lê na contracapa, sequer uma sombra de narrativa juvenil nem vejo onde possa estar a fábula. É, de facto, uma epopeia exemplar, resultado de um pensamento adulto e lúcido.

Eu entendo o final, e aqui entramos na minha terceira reacção, tal sociedade não era possível, tornava-se necessário acordar-se desse sonho em nome da realidade. Mas perguntei-me seria preciso destruí-la? Era, senão o romance seria outro, e outro, o seu autor, diferente no pensamento e na visão do mundo, e a anti-epopeia, por não se pôr, não tentaria fazer o seu papel, que, a meu ver, não conseguiu durante as restantes quarenta e seis páginas, porque a epopeia prevalece na obra. Perguntei-me, por isso, qual seria o resultado na leitura se a trama mantivesse aquele país (domínio) em construção até final da narrativa e continuando depois dela, ainda que me parecesse obrigatório deixar dito ou sugerido a sua destruição futura para anular o seu lado utópico. Um romance optimista até â página duzentos e quarenta e dois, uma realidade ficcional, digamos assim, desejada por muitos como exemplo para o futuro, afinal o Futuro por que os naumans lutavam.

Sendo um romance em tudo diferente dos que escreveu, não pode comparar-se com eles por ser tão diverso, nomeadamente no seu carácter epopeico, mas não só. Foi uma surpresa para mim e um livro de elevada dignidade. Não o coloco ao lado dos outros que escreveu. Não é possível. Foi uma fuga do ambiente geral em que decorrem os seus romances e ocupa um lugar isolado, e de qualidade, na sua obra presente. A este propósito, não deixo de perguntar-me, sem com isso querer uma resposta, se não seria um livro escrito há muito. Nada o indicia, salvo ser um romance diferente no assunto e no tom. 

Só exige, e bem, ser lido como deve ser.

Receba os meus cumprimentos,

Nuno Dempster 

Nota: O livro foi escrito no verão passado. A publicação deste texto de correspondência tem o acordo do destinatário.
 
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