27.3.21

O Mapa do Mundo, um livro de surpresas, de Pedro Eiras

O Mapa do Mundo, o mais recente livro de Pedro Eiras, é uma obra que põe a pensar os leitores que, como eu, arrumam os seus livros de literatura segundo o género. E, no fim da leitura deste livro, coloca-se-nos o problema de o arrumar no lugar justo. Porque interpretar Pedro Eiras pode originar e origina opiniões básicas desencontradas. Nem que seja apenas pelos seus dois últimos livros publicados, um quase a seguir ao outro, este a que venho, e Inferno, de poesia. Segundo o autor, numa entrevista dada na livraria Flâneur, a escrita de O Mapa do Mundo é anterior à de Inferno. No entanto ou por isso mesmo, a linguagem dos poemas de Inferno encontra-se já na prosa de O Mapa do Mundo, como se este fosse de alargados versos, um texto de poesia em prosa. Parece estar-se também diante de uma peça dramática, género cultivado por Pedro Eiras. As personagens no texto não saem fisicamente do limitado espaço cénico, senão pela palavra. É a partir dela que o espaço exterior se cria. É um diálogo entre O Pai e O Filho, dividido em cinco livros, dois de cada um e outro de O Touro, e cada fala deles é um capítulo à semelhança dos romances e, todavia, a identificação da personagem que intervém surge inscrita no início de cada fala / capítulo, remetendo assim a obra para um texto de teatro: O Pai, O Filho e depois O Touro.

 Até que ponto O Touro, negro, que O Filho nomeia e que me sugere o Minotauro de cor oposta, é também ele uma personagem? Não é nem tem porque o ser. É uma bela e muito densa metáfora. Na sua entrada como terceira hipotética personagem, no Livro III, O Touro, nada há escrito. Há uma página negra em branco, não mais, o que me colheu com surpresa e agrado, bem assim parte do desenho da planta de uma cidade, como que colado duas vezes entre o texto das falas / capítulos de O Pai, arquitecto, que está a traçá-la, e ainda o desenho a tinta de um bailarino num passo de dança, que aparece também duas vezes nas intervenções de O Filho, mas na segunda vez virado de cabeça para baixo, sugerindo um mergulho. Também estes desenhos no meio do texto me surpreenderam e, sem dúvida, enriquecem e ajudam a destacar, a individualizar ainda mais o livro. Nas páginas, como no palco, aparecem outras artes e meios em apoio da encenação contemporânea. É outro dado para quem gosta de analisar o que lê. Posto isto, O Touro é uma figura poética, notavelmente trágica e de grande intensidade, e, pela fala de O Filho, logo se sabe ser uma ameaça presente. A morte? Julgo que seja a morte enquanto sujeito poético e depois a morte física de O Filho, quando ele se põe literalmente dentro da pele do touro e, antes, o bailarino mergulha e ele se suicida. Não interessa tanto o que seja quanto o que parece durante a leitura. Só quando, acabada a leitura, se digere o livro é que a morte aparece em toda a extensão e não apenas quando se aproxima o final.

 Permita-se-me afirmar que O Mapa do Mundo ou se lê como um hermeneuta ou como um leitor de poesia, e os leitores, falo por mim, gostam pouco de abrir sentidos a maço e cinzel, aliás esforço inglório, porque o livro se perderia. Temos pois que o discurso é poético, que a trama é de uma tragédia, O Pai, o suicídio de O Filho, a convocação da mãe falecida, um dos mais altos pontos catárticos, O Touro que nos faz recuar para as tragédias gregas, um livro que tem de ser absorvido todo ele como texto poético, mesmo quando, por necessidade de ligação ou de acção, ou por mera opção criativa, nomeadamente a fuga a regras, se usa a prosa, no caso narrativa. E esta forma, a prosa, é controlada no seu ritmo por parágrafos abundantes e breves, de uma ou duas linhas, com frequência separados por dois toques do enter, parágrafos de períodos curtos e curtíssimos, pela sucessão rápida de frases, quando não por uma ou duas palavras apenas e supressões súbitas, o que a aproxima dos ritmos da poesia. Também se percebe, tal como em poemas, trechos que terão sido escritos velozmente, com urgência, bem como o seu contrário, e mais e o mais importante, a par da capacidade criativa do autor, a linguagem poética, que, fazendo parte dessa capacidade, foge de todo aos herdeiros tardios da escrita automática, com o seu léxico comum de metáforas, que podem misturar-se num copo de póquer e deitar-se sobre o papel, mas esta é uma linguagem honesta, tantas vezes surpreendente, a de Pedro Eiras, que se apreende por sensibilidade, ela mesma significante, formando significados sensíveis, um pensamento, uma ideia que, com frequência, não se percebem à letra, mas que possibilitam ser captados por sugestão. Uma escrita dramática? Também. Melhor, tão poética quanto dramática. Que livro? Talvez esteja mais próximo de uma tragédia; talvez Pedro Eiras o tenha pensado como um monólogo, todo ele, através da fala de O Pai. Como seria ou será levado à cena o texto? Com duas personagens, só com uma, O Pai? Com o touro de Guernica projectado no fundo da cena? Quem sabe não possa ser também uma narrativa para um leitor menos dado a análise? E porque afirmam que Inferno é o primeiro livro de poesia de Pedro Eiras? se há mais de dez anos no-la deu em forma de monólogos em verso. Já li chamarem-lhe poesia dramática, quando é poesia que pode ser lida enquanto poesia lírica e se encenada tanto melhor, porque tenho para mim que o teatro, servindo-se na encenação das restantes artes, é o cume da arte hoje, em poder e riqueza de expressão. Mas poesia dramática? E os textos originalmente narrativos? Os textos tornam-se dramáticos quando encenados e é essa a aspiração maior do dramaturgo. E, no entanto, a tragédia é sugerida na leitura, e é nesta rede de interligações que O Mapa do Mundo surge. Só que este livro tem a grande virtude de não necessitar de ser encenado para assistirmos a ele. Lemos e, lendo, temos poesia, drama, narrativa, inclusive encenação mental, com trama ou sem ela, em poesia dita ou lido como texto. Tudo é possível neste livro, e a linguagem poética ajuda, com um fresco sabor a renovação da sua herança com quase um século, que, por a renovar, não a repete, não a finge, como é vulgar suceder, já se disse. E os achados, as verdades, os socos no estômago apanham-nos indefesos no texto, surpreendem-nos. «Uma cidade é um contentor», disse O Filho a dada altura. Sem dúvida. E o que é um contentor? Um caixotão de aço com vinte toneladas de coisas dentro. E o que somos nós na cidade que é um contentor? Coisas. Não contamos. Eis como O Mapa do Mundo nos abana, além do mais. Onde colocá-lo? Onde quisermos, porque o livro está escrito e publicado, e a obra é assim mesmo, tão livre de classificações quanto é possível sê-lo. É um dos seus encantos e o que, em parte, o torna diferente. Muito perderia eu se não o tivesse lido.

 O Mapa do Mundo, Pedro Eiras, Companhia das Ilhas, Outubro de 2020.

 

 

 

 
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