24.2.09

Um livro de Amadeu Baptista

Mais que a unidade que se retém do livro de poemas Os Selos da Lituânia, de Amadeu Baptista, aliás sólida na forma e vasta no universo que une, salta a leitura do verso amplo, dos parágrafos longos a que obriga o emanar poético com uma força que o pensamento controla, por meio de uma disciplina exigente, sem concessões a desbordamentos automáticos, digamos não tanto para referir esse mito do Surrealismo, quanto aparentemente para se despojar da ganga que toda a emanação poética torrencial tende a trazer. Mas escrevi aparentemente, e quero com isso significar que a disciplina da gestação da escrita de Amadeu Baptista já o faz, quando o pensamento, atravessando a memória em estado de subconsciência, define com clareza o que e como está a ser dito no momento. Trata-se pois de uma escrita consciente e controlada, em que está programada, como exigência e necessidade, a vontade expressa de inteligibilidade da linguagem.

Ou seja, parece surgir de novo o assunto polémico da escrita do real versus a herança dos vários modernismos que, em ondas concêntricas cada vez mais afastadas, se vêm sucedendo há quase um século. Mas não. A meu ver, isso assume o carácter de uma questão extemporânea. A exigência ética de clareza no discurso poético é uma necessidade, diremos que pós-moderna, que, em contracorrente, já Jorge de Sena invocava, poeta tutelar cujo nome não poucos calam cuidadosamente. E essa necessidade de expressão poética clara alargou-se, com o acesso facilitado ao conhecimento de outras poesias, quer pelos meios de informação quase instantânea, quer por o desenvolvimento económico crescente exigir cada vez mais e maiores consumidores, neste caso de objectos de cultura. Tudo isto para fundamentar, se preciso fosse, a contemporaneidade do discurso de Amadeu Baptista.

Mas a poesia, na qual se inclui a de Os Selos da Lituânia, não é, naturalmente, apenas uma questão de escolhas formais, fundamentadas no tempo em que surge face à época de que descola (e de que evolutivamente Amadeu Baptista vem, mas isso é outro assunto). É também, por um lado, o testemunho humano do seu tempo; por outro, o tratamento dos temas que conformam a condição humana, manifestada desde os sinais primitivos que contiveram a sua expressão e realidade. E – tão visível neste livro - é também vibração, intensidade, encadeadas num sábio registo coloquial, ritmo, prosódia, descrição fílmica de imagens da realidade que nos suscitam, de outro modo, o que a poesia exige de si mesma: alcançar o âmago da sua própria humanidade, ao dizer mais do que as palavras, por si só, seriam capazes. E, ao contrário do que li algures, é uma poesia que, a comprovar a superficialidade de aí se ter julgado prosaica, ganha em ser dita ou lida em voz alta, resgatando assim o carácter primeiro da poesia, que é ser ouvida, agora já não em paços e salões, mas em lugares públicos onde ela é dita e no complexo contemporâneo das artes performativas.

A temática é ampla, numa obra que inventaria a vida do poeta, “escrever pode ser provavelmente / um ajuste de contas com o passado”, sem sombra desse confessionalismo que impede as palavras de se juntarem esteticamente em poesia, sendo frequente a descrição, diria mais, o reconhecimento e assunção do seu meio social, “substituí o coração do meu avô, que era barqueiro, / por este homem que morava no segundo andar”, num avanço de peito aberto que, nos poemas mais intensos e doridos, me fez lembrar Camões e cuja franqueza me remeteu, como atitude poética, para Walt Whitman, afirmo-o apenas como sugestão por mim colhida, sem qualquer carácter objectivo. Um livro a ler e também a reler, não por dificuldade de entendimento, mas pelo prazer sem cansaço que dá entrarmos de novo nos seus poemas, como sucede com as peças de música de que gostamos.

Os Selos da Lituânia, Amadeu Baptista, edição da & etc, 2008.
 
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