26.8.09

Arroz de Salpicão



Entraram no restaurante perdido na terreiro-pacense palavra interioridade, um restaurante pouco mais que tasca do campo, onde se almoça por seis euros e meio. Eu estava no fim do arroz de salpicão e, com receio da mais que certa falta de qualidade do vinho, bebia uma espécie de tinto de verano dos castelhanos, mais pobre, só vinho e gasosa frescos, sem gelo e sem rodelas de limão. Eram seis os que tinham entrado, três homens e três mulheres, forasteiros pelo aspecto, topam-se à légua, caídos como que de pára-quedas nestas brenhas.

Os dois homens mais velhos, a beirar os cinquenta, usavam barba. Um deles, à minha frente, de esguelha, na mesa da esquerda, trazia uma t-shirt, onde li Funerária de Mora, e reparei que os outros dois, mas não aquele, tinham a pele estiolada, como penso suceder não poucas vezes a quem lida com funerais e coisas do divino.

O mais novo, de uns vinte e vagos anos, era magro, tinha um bigode ralo e largo, fora de moda, cabelo curto, cara de grão-de-bico, isto é, sem queixo, notoriamente pálida. Pareceu-me o mais estiolado dos dois e o mais gato-pingado, sendo que o da t-shirt era normal, imaginei que fosse um verde, quando reparei nuns símbolos vagamente ambientalistas da camisola, sob as palavras Flumário de Mora, que julguei ter lido melhor, sem saber, como não sei, eu e ninguém, o que seria um flumário.

Chegava o pedido deles, comigo já no melão. O da cara de grão-de-bico e a hipotética esposa de altar, que estava a seu lado, iam comer febras, daquelas deslavadas, que só levam sal. Batatas fritas, arroz, salada. O do Flumário, mais a sua avantajada consorte, foi para o arroz de salpicão. O outro gato-pingado e a mulher em frente receberam o pedido de entrecosto, tão sem sabor quanto as febras do outro. Tamanha vulgaridade de escolha, as febras e o entrecosto, talvez fosse, pensei eu, uma coisa comum a gente que lida com essas coisas do espírito, mais as funéreas que as divinas.

Eu tinha pressa e queria confirmar a palavra na t-shirt. Por fim, depois de alguma ginástica, consegui ler, desiludido: Fluviário de Mora. A palavra fluviário não existe, pelo menos na minha cabeça e no dicionário da Priberam on-line, não estou em casa para ir a outro, mas não será preciso, parece-me um neologismo tolo, originado em aquário, a que, com bem maior impacto, podiam ter chamado Aquário Fluvial de Mora.

Enfim, os outros, por via da minha desilusão, já tinham deixado de ser gatos-pingados; o mais novo, o cara de grão-de-bico, andaria assim pálido porque a sua legítima lhe seria sumamente apetitosa e não se davam repouso; o outro, porque talvez fosse um terceiro escriturário das Finanças e não apanhasse luz do sol. Quanto ao verde, deixara de ser verde para ser não sei se um votante cor-de-rosa, se cor-de-laranja (confundem-se), com a louvável e proveitosa inclinação para escolher cozinha regional, o arroz de salpicão, que estava bem bom.
 
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