12.10.09

Lábio Cortado, de Rui Almeida
















Rui Almeida (n. Lisboa, 1972) estreou-se em 2008 com o livro Lábio Cortado e estreou o prémio Manuel Alegre de Poesia, instituído nesse ano pela Câmara Municipal de Águeda, obtendo o primeiro lugar. Não é despicienda a precisão acerca da origem do nome do prémio. Não é Manuel Alegre que o promove, é a autarquia, à semelhança de um número crescente de instituições, autárquicas ou não. Estes prémios constituem, para quem os ganha, a possibilidade de verem editado o seu primeiro livro (e não só esse). Esteja-se ou não de acordo com concursos de originais, queira ou não se queira concorrer a prémios de poesia, o certo é que deles vai crescendo a revelação de novos poetas, valorizando aos poucos uma arte tão socialmente pobre como é, entre nós, a poesia, e, mais, indo buscar-se o valor pecuniário do prémio, facto que é de ter em boa nota, porque se, sem falsos pruridos e pré-juízos snobs, o dinheiro dá sempre jeito, o que conta, e sempre deveria contar, é a poesia que se apresenta: premiada, sei-a da medíocre, para não dizer má, até à excelente.

Não vou atribuir pontos, nem estrelas, nem marcas de whisky (como aqui) a Lábio Cortado, senão tentar indicar os aspectos essenciais, como possível guia de leitura e, melhor ainda, de confronto de ideias, de modo a que cada um confirme a sua própria visão do livro e, em primeiro lugar, o autor, que é quem sabe ao certo as suas escolhas.

Devo esclarecer que este texto é uma evolução do que li a Henrique Fialho no seu Antologia do Esquecimento, pessoa e blogue dos meus afectos.

Quero referir-me à(s) forma(s), aos recursos da linguagem poética e à prosódia; ao tempo em que veio e onde se encaixa; aos assuntos e ao seu resumo em apenas um tema, o modo de o poeta estar no mundo e na vida; à inserção da poesia no seu presente e também no seu passado estéticos, e ainda no presente social e portanto político em que se inscreve a gestação dos poemas.

Na forma exterior, por contraposição taxonómica, à forma interior, ou seja, nesta, o modo de o discurso se articular no poema, parece haver, à primeira vista, a intenção de disciplina estrófica em quase metade dos poemas, quinze em trinta e um, dos quais cinco transbordam o período final da estrofe anterior para a estrofe seguinte, criando falsas estrofes sob o ponto de vista formal clássico, sendo que dois destes (pág. 35 e 49) são uma subversão da ordem das estrofes no soneto italiano (sem métrica nem rima) e um, com um muito saboroso encavalgamento no fim, que anula a regularidade estrófica em que vinha (pág. 31): “Nunca é sombra o gesto de apagar/ O cigarro que esteve aceso./ Sabendo que antes e depois de agora, /o sono.

Portanto, feitas as contas, haveria nove poemas com estrofes aparentemente perfeitas, e um destes, um conjunto de dísticos sem ligação, senão por numeração romana, o que nos induz no erro de buscarmos alguma continuidade no dístico seguinte, como se fosse um poema e não apenas um conjunto de dísticos, e, destes, os três últimos com carácter aforístico, o que me vem confirmar a independência de cada par de versos. No mais, não há metro regular, nem acentuação tónica predominante subjectiva, nem combinação de metros deliberada. Acabamos assim por ficar com oito poemas com estrofes, digamo-lo momentaneamente, regulares.

No entanto, destes oito, só quatro poemas se compõem de estrofes regulares verdadeiras, isto é, contêm em si uma parte do poema, independente das estrofes que a limitam antes e depois, mas que as interliga, e não são passíveis de divisão ou de junção, o que arruinaria irremediavelmente o poema (ver pág. 7, 21, 30, 61). Os restantes quatro poemas têm estrofes falsas, porque podem dividir-se ou unir-se a uma estrofe vizinha, sem prejuízo da unidade, quando muito apenas da mancha do poema. Daí não ser excessivo concluir que a disciplina versificatória é menos que residual em Lábio Cortado. Limita-se a quatro de trinta e um poemas, uma disciplina escassa na exigência, de resto muitíssimo facilitada pelo tipo de períodos sintácticos que predominam no discurso poético deste livro.

Aliás, se Rui Almeida tivesse optado por uma disciplina inequívoca, estaria a manifestar o interesse pós-moderno por composições de forma fixa simples ou composta, pensando eu aqui mais na questão métrica e não no modo de a poesia se resolver esteticamente, interesse esse demonstrado por poesias estrangeiras contemporâneas, nomeadamente, em Espanha, pela Poesía de la Experiencia, opção quase não sentida na poesia portuguesa que vai saindo. Estou a lembrar-me dos decassílabos de Fernando Pinto do Amaral (n. 1960) e ainda das episódicas quadras em redondilha maior de Rui Pires Cabral (n. 1967). Não é o caso de Lábio Cortado, o que se deduz do que ficou dito.

Rui Almeida exprime-se em geral em períodos curtos, o que nos sugere, na leitura, uma dureza brusca, afinal um modo abrupto de dividir o poema, à semelhança de quando era falta grave, na poesia moderna, manifestar qualquer tipo de regras (que nunca deixou de as ter, embora outras). Tome-se, como exemplo, um pouco excessivo, o primeiro poema do livro, aliás um belo poema em seis quintilhas imperfeitas. Se contarmos os períodos sintácticos, o poema tem um de meio verso, três de um verso, oito de dois versos, um de dois versos e meio e três períodos de três versos. Dezasseis períodos sintácticos para trinta versos, uma média de 1,9 versos por período (no geral do livro, esta média não andará longe dos 2,5 versos por período). Esta característica mascara o balanço de uma composição estrófica, mesmo irregular como é a deste poema, e torna dura e heteróclita a sucessão dos versos. A ser assim, as quintilhas, e noutros poemas outro tipo de estrofes, poderão constituir uma opção do autor acerca da mancha do poema, que tem a sua importância estética, e não uma opção de forma clássica tout court. E não será abusivo ir uma pouco mais adiante, sabendo eu que Rui Almeida é um poeta leitor de muita poesia: pensemos então nas aqui mais que faladas estrofes, quase todas irregulares, nos sonetos subvertidos, no inicio dos versos com maiúscula, na numeração romana de alguns poemas, misturada à numeração árabe, nos períodos curtos, que negam o fluir da poesia discursiva, o que insere Lábio Cortado em determinado tipo de poesia e num dos seus dogmas mais importantes, que é a liberdade versificadora (sabendo nós que é bem curta essa liberdade).

Posto isto, será de nos perguntarmos se Rui Almeida deseja alguma forma clássica e se, em vez disso, não a mascara na paródia dela. Julgo que o autor do posfácio de Lábio Cortado, Paulo Sucena, ao referir-se a “uma sólida austeridade formal”, deveria estar a fazê-lo em relação a um tipo de poesia fora das regras tradicionais da versificação, porque essa poesia também tem forma e obedece, em cada poeta, a regras mensuráveis.

Curiosamente, em contraponto, associa-se à particularidade prosódica dos períodos sintácticos curtos uma musicalidade em geral macia, diria clássica, das palavras no verso, com uma sensível alternância vocálica e, frequentemente, com fluidez das consoantes, tudo isto, e mais uma vez, em grande contraste com os períodos curtos. Também aqui, em Lábio Cortado, o poeta é o resultado da leitura de muitos outros poetas, bem como da escolha do ouvido próprio, que é sempre uma comodidade, um sentir-se bem com o som das próprias palavras.

Pela linguagem, numa teia em que são abundantes símbolos e metáforas, e também imagens que se convertem nessas figuras, dando ao texto o dito carácter de teia, por vezes fortemente hermética, que a própria poética da pág. 19 vem enunciar claramente: “(…) Retrocedes a boca ao acaso e falas,/ Projectas na dicção o desequilíbrio enquanto dormes,/ Na inerte sintaxe afeiçoas a voz/ E subvertes as palavras simples. // Um vocabulário marcado por conflitos,/ Desvelamentos de afectos e emoções/ Ampliações de modos e sentidos/ Derramados por uma outra vida.”, é por esta linguagem, ia dizendo, que pode incluir-se Lábio Cortado na sequência modernista (surrealista), como base tradicional de uma parte da recente poesia portuguesa, e não só portuguesa. No entanto, há neste livro , poemas e partes de poema que alargam a malha e propiciam uma leitura mais cómoda, deixando o leitor repousar do esforço hermenêutico e sensitivo da decifração de outros poemas.

A par deste facto, o ambiente central, a desesperança, o sentimento de impotência, o quotidiano repetido sem milagres, mas também alguma claridade, os limites físicos e, em Rui Almeida, também os metafísicos, ocultos em símbolos e metáforas que tentam baixar o tom, e baixam, de um desconfortável conflito ontológico entre o real e o divino, trazem a sua poesia para o nosso tempo pós-moderno, com o respectivo cortejo cinza de situações restritivas, consequência social de um tempo de neoliberalismo selvagem e de perverso avanço tecnológico que, por efeito de os viver, o poeta testemunha, desde logo no seu primeiro livro.

Lábio Cortado, Rui Almeida, Livrododia, 2009.

Nuno Dempster

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