22.6.10

Minimal Existencial, de Paulo Tavares




NEPTUNO

Neptuno dorme; e não grites em pânico
se te for essencial deixá-lo dormir por um pouco.
A água das fontes corre impotável
e a cidade cresce na noite como uma clareira
onde nenhum encontro é possível: ampla e luminosa,
sustém em rede todas as formas de esquecimento.
Neptuno dorme, nas rotundas e nos jardins,
pelo êxtase lúdico da amnésia. Por isso,
não lhe grites em pânico; e se te for urgente
interromper o fluxo dos resíduos em excesso,
se te for essencial dormir também por um pouco,
sê breve nesse sono, e traz contigo a torrente
de uma fonte impoluta.


Minimal Existencial, de Paulo Tavares (n. 1977), é o segundo livro de poesia do autor, agora com edição da Artefacto, depois de Pêndulo, editado em 2007 pela extinta Quási e já aqui referido.

Minimal Existencial, que toma o título do penúltimo poema da compilação, é um livro de arrumação complexa. Com isto quero dizer que exige de nós a sua desmontagem, em busca do entendimento de uma ordem, a ordem do autor ou a nossa própria imaginada, e a intenção com que o autor assim a dispôs ou a intenção que vemos nela, isto para quem estas coisas importam, pelo menos tanto quanto para aqueles que pensam um livro com evolução facilmente visível na disposição dos poemas. O certo é que esta arrumação teve o condão de me provocar, e não apenas isso, também os adereços necessários ao efeito e ao próprio poeta, como logo o que surge na primeira página do livro, que é uso vir em branco, quebrando assim essa norma consuetudinária:

[poesia para duas personagens e um narrador]

Isto remeteu-me, logo no início, para um livro de texto de teatro e só agora para uma peça de música, mas a música não tem o sentido interventivo de que a arte dramática fundamentalmente vive.

Porém, na página a seguir ao índice, a última, em que estão os dados legais, surge o título do livro e, imediatamente a seguir, aquele entre parênteses, como se fosse um subtítulo a posteriori. Este facto poderá ou não fazer parte de um jogo do poeta. Nada altera porém o que me lembrou de início.

Não é intenção meter-me em interpretações, mas pergunto-me até que ponto um livro de poesia não é encenação do próprio poeta, que a si mesmo se vê e, autopsicograficamente, se finge , não somente num solilóquio, mas também num diálogo entre si mesmo e o que o rodeia, não somente numa indagação fenomenológica, mas também num acto testemunhal do que o condiciona como ser ontológico e social, aqui já me refiro à poesia de Paulo Tavares. Leia-se e ouça-se o poeta no vídeo acima e, ao mesmo tempo, repare-se que o Neptuno de que o poema trata é o da estátua do Largo de Dona Estefânia, em Lisboa, que o vídeo mostra e que, por qualquer motivo, o poeta chamou para o poema. Compreender-se-á este complexo de forças interiores e exteriores de que se gera a poesia de Minimal Existencial, que o mesmo é dizer, de Paulo Tavares.

Voltando à arrumação do livro – e falo dela, porque tenho gozo em fazê-lo e porque revela uma atitude de libertação do cânone –, a primeira parte dir-se-ia uma introdução, não sucedesse dois dos poemas parecerem negá-la, embora sendo apenas três, hipótese que a parte seguinte vem pôr de lado, só com quatro poemas, cuja soma de palavras não ultrapassará a soma da primeira. Além disso, o facto é que a introdução, para além de, antes, as epígrafes (de Jorge de Sena e de Peter Hanke), se deu com o título desta parte inicial, título que de novo provoca e instiga:

Aviso:
Esta Acção É completamente
Irreversível


Isto, apesar de o primeiro poema do livro, Linha a Linha, ter também carácter introdutório, no entanto umbilicalmente mais ligado ao título da parte que inicia do que a si mesmo como introdução:

Segue linha a linha
a página ausente, o texto corrido
até ao abismo disperso.(…)

Parece-me claro que esta forma ambiciosa, e conseguida, de se iniciar um livro de poesia sobe o grau de expectativa acerca do que vem a seguir, expectativa que a leitura confirmou como unidade conseguida e, mais, indispensável.

Tal como no livro de estreia, a inadequação à realidade é um leitmotiv, e não só se mantém, como parece crescer em relação ao primeiro livro, o que poderá significar, se a cronologia da feitura dos poemas se ajustar com a sua publicação, que a poesia de Paulo Tavares reflecte, com o rigor de um instrumento de medida, o agravamento social do presente e do futuro em que vivemos. Veja-se a força com que essa inadequação participa no poema e a intensa imagística de que se serve (pág. 21):

Ainda o som hipnótico
das ambulâncias, a repetição aguda
dos alarmes de incêndio e a antiaérea
num infernal compasso de espera.

e na pág. 25, no poema Órbita Irregular:

Sento-me
sobre os despojos do mundo moderno
para repensar um pouco a sua órbita,
mas eis que o silvo dos projécteis,
o fumo, a fúria, o caos me impelem
do mesmo modo, mas não totalmente
rendido, à corrida por um abrigo.

Também a abordagem amorosa ocorre como inadequação, a inadequação da rotura, na segunda parte do livro, Volume Incerto, a que disse acima ser formada por quatro poemas, três deles constituindo uma série perfeita, intitulada precisamente Rotura. Um livro a não perder.

 
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