Henrique Manuel Bento Fialho, HMBF a partir daqui, trouxe agora à luz Estranhas Criaturas que, na abertura do livro faz datar de 2009, e que veio a ser publicado pela Deriva no passado mês de Junho.
Às vezes, no início de livros, está a chave da cancela de portagem que dá acesso à estrada onde, ao fundo, se lê FIM. Aqui, todavia, fim tem o significado de finalidade, a de ajudar a revelar-nos aonde nos leva a estrada por onde vamos lendo.
Assim funciona a epígrafe de Estanhas Criaturas, retirada de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, da história 5, da parte de As Cidades Ocultas. Lendo-a, sabemos que Teodora, a cidade da história, foi sujeita, ao longo dos séculos, a invasões sucessivas de pragas de animais, que o homem foi vencendo, até conseguir a sua paz e a sua ordem, era o que todos os teadorenses já pensavam. Mas, da biblioteca da cidade, dos tomos de Buffon e de Lineu, acordaram de longa letargia toda a sorte de seres mitológicos malditos, que reocupam Teodora e a governam.
HMBF serve-se não só da epígrafe retirada desta história, como denunciadora de um tempo convulso, e talvez final, que sentimos ser o nosso (a que o tempo de outros irá suceder, acrescento eu), mas também como fornecedora de títulos aos textos, os nove nomes da citação, mais doze de figuras mitológicas malfazejas como aquelas, ou outras figuras perversas, retiradas da Literatura, Dr. Jekyll, Dr. Mabuse e Zaroff. Não é despicienda a função lateral que estas figuras têm no livro, a de reforçarem a sua unidade, já de si conseguida, quer pela disposição dos textos, quer pelo tom verberante que HMBF confere à escrita, um modo que, por si só, conseguiria a unidade, mesmo depois de baralhada toda a ordem do livro.
Tal como em As Cidades Invisíveis, sem mais nenhum contacto que o já dito de denúncia do nosso tempo, HMBF utiliza o texto curto, raramente maior do que uma página, que vemos hoje usado com democrática frequência e desbarato, ainda assim bem mais curtos, com o olho na clientela de leitura dita sem tempo disponível — nada de generalizações, ouço —, o que em Estranhas Criaturas não sucede, por ser um tamanho que assenta bem no carácter frequentemente alegórico, a que a figura ou o termo do título dos textos reforçam.
Ainda: alguns dos textos exigem esse tamanho por assumirem a forma de poema em prosa(1), que raramente requer proporções maiores. Temos, como exemplos claros de poemas em prosa, Água Benta, Aguarela, Basilisco (uma bela alegoria), Casas, Esfinge, Hidras, Morte, Poemas, Profetas, Sátiros, Vento e Zaroff, o último texto do livro, que avulta como final e como poema em si. Haverá mais poemas em prosa, porém foram estes que se me salientaram com maior clareza.
A linguagem poética usada não exige nenhum hermeneuta, é, pelo contrário, imediatamente digerida, mesmo quando, aqui e além, se transmuda em necessidade de significação e entra no campo sensorial da escrita e da leitura.
São ao todo quarenta e oito textos, em que sobressai a revolta social, a crítica mordaz, a rejeição, a irrisão da figura de poetas, cujo exemplo mais refinado é, desde logo, a Introdução ao livro, escrita pelo próprio, e presente nos textos Ophiuchuos, Quíron, Unicórnio, Vampiro, não sei se saltei algum texto. Digo que o barrete servirá a muitos, só que aposto 1 contra 1.000 que ninguém o vai pôr, isto é coisa que HMBF sabia antes de a escrever, e mesmo assim não só a escreveu, como a publicou, digo-o para melhor exemplificar o desassombro de todo este livro. Não é um livro que faça bem ao fígado, mas aos olhos garanto que faz. E não esqueça, para o fígado há o Cholagutt. Ataque logo, na primeira toma, com trinta gotas, o dobro do que eles mandam. Remédio santo.
(1) Não poucas vezes se comete a sinédoque de substituir poema em prosa por prosa poética. A prosa poética é a que define o poema em prosa, mas também que pode estar presente em peças de prosa tout court, ficção, crónicas, etc.
Às vezes, no início de livros, está a chave da cancela de portagem que dá acesso à estrada onde, ao fundo, se lê FIM. Aqui, todavia, fim tem o significado de finalidade, a de ajudar a revelar-nos aonde nos leva a estrada por onde vamos lendo.
Assim funciona a epígrafe de Estanhas Criaturas, retirada de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, da história 5, da parte de As Cidades Ocultas. Lendo-a, sabemos que Teodora, a cidade da história, foi sujeita, ao longo dos séculos, a invasões sucessivas de pragas de animais, que o homem foi vencendo, até conseguir a sua paz e a sua ordem, era o que todos os teadorenses já pensavam. Mas, da biblioteca da cidade, dos tomos de Buffon e de Lineu, acordaram de longa letargia toda a sorte de seres mitológicos malditos, que reocupam Teodora e a governam.
HMBF serve-se não só da epígrafe retirada desta história, como denunciadora de um tempo convulso, e talvez final, que sentimos ser o nosso (a que o tempo de outros irá suceder, acrescento eu), mas também como fornecedora de títulos aos textos, os nove nomes da citação, mais doze de figuras mitológicas malfazejas como aquelas, ou outras figuras perversas, retiradas da Literatura, Dr. Jekyll, Dr. Mabuse e Zaroff. Não é despicienda a função lateral que estas figuras têm no livro, a de reforçarem a sua unidade, já de si conseguida, quer pela disposição dos textos, quer pelo tom verberante que HMBF confere à escrita, um modo que, por si só, conseguiria a unidade, mesmo depois de baralhada toda a ordem do livro.
Tal como em As Cidades Invisíveis, sem mais nenhum contacto que o já dito de denúncia do nosso tempo, HMBF utiliza o texto curto, raramente maior do que uma página, que vemos hoje usado com democrática frequência e desbarato, ainda assim bem mais curtos, com o olho na clientela de leitura dita sem tempo disponível — nada de generalizações, ouço —, o que em Estranhas Criaturas não sucede, por ser um tamanho que assenta bem no carácter frequentemente alegórico, a que a figura ou o termo do título dos textos reforçam.
Ainda: alguns dos textos exigem esse tamanho por assumirem a forma de poema em prosa(1), que raramente requer proporções maiores. Temos, como exemplos claros de poemas em prosa, Água Benta, Aguarela, Basilisco (uma bela alegoria), Casas, Esfinge, Hidras, Morte, Poemas, Profetas, Sátiros, Vento e Zaroff, o último texto do livro, que avulta como final e como poema em si. Haverá mais poemas em prosa, porém foram estes que se me salientaram com maior clareza.
A linguagem poética usada não exige nenhum hermeneuta, é, pelo contrário, imediatamente digerida, mesmo quando, aqui e além, se transmuda em necessidade de significação e entra no campo sensorial da escrita e da leitura.
São ao todo quarenta e oito textos, em que sobressai a revolta social, a crítica mordaz, a rejeição, a irrisão da figura de poetas, cujo exemplo mais refinado é, desde logo, a Introdução ao livro, escrita pelo próprio, e presente nos textos Ophiuchuos, Quíron, Unicórnio, Vampiro, não sei se saltei algum texto. Digo que o barrete servirá a muitos, só que aposto 1 contra 1.000 que ninguém o vai pôr, isto é coisa que HMBF sabia antes de a escrever, e mesmo assim não só a escreveu, como a publicou, digo-o para melhor exemplificar o desassombro de todo este livro. Não é um livro que faça bem ao fígado, mas aos olhos garanto que faz. E não esqueça, para o fígado há o Cholagutt. Ataque logo, na primeira toma, com trinta gotas, o dobro do que eles mandam. Remédio santo.
(1) Não poucas vezes se comete a sinédoque de substituir poema em prosa por prosa poética. A prosa poética é a que define o poema em prosa, mas também que pode estar presente em peças de prosa tout court, ficção, crónicas, etc.