6.8.10

Curso Intensivo de Jardinagem, de Margarida Ferra


No final de ter lido Curso Intensivo de Jardinagem, de Margarida Ferra (n. 1977), doravante MF, publicado pela & etc em Maio deste ano, com capa de Luís Henriques, ficou-me não apenas a ideia, mas também o gosto de uma poesia urbana, limpa, sem tiques, sem cenários imaginariamente programáticos, sem as velhas complicações na exploração semântica das palavras que, caricaturando, por se quererem tantos significados quantos leitores haja, o mais certo hoje é, in extremis, nem o próprio escrevente saber o que escreveu. Por outro lado, a poesia de MF, que nos dá logo no seu primeiro livro, não é, nem precisa de ser uma poesia complexa, nem a complexa é mais do que a que nos parece linear, pouca o sendo, como se sabe, de resto como a de MF não o é.

Um dos atractivos desta poesia é o horizonte urbano, próximo do dia-a-dia, e o equilíbrio que nele se descobre, o qual, por identificação ou por vontade de nos vermos também assim, o tornam nosso enquanto leitores, ultrapassando desse modo o registo meramente pessoal. O poema Play, de que abaixo transcrevo excertos, faz-nos entrar num mundo de equilíbrio como pouco se vê na poesia portuguesa mais recente, sendo que equilíbrio será uma palavra maldita para alguns, desconfiando eu que esses não sabem nem o que é desequilíbrio, nem, muito menos, o seu preço.

«Não há na minha lista nenhum nome incompleto,
nenhum pacto sobrevivente,
nenhuma resposta extraviada. (…)

Não me lembro de números antigos,
qualquer palavra desnecessária,
fotografias com mais de quinze anos.
Na minha vida sempre tive dois filhos.

Nasci com dois seres inteiros —
uma menina e um menino —
dentro de mim,
toda a minha lista acabou de se fazer há dez segundos. (...)»


Mas também esse horizonte se torna complexo pela vontade da ocultação metafórica, não só por palavras e sintagmas isolados, mas igualmente por peças inteiras que os contêm, a começar pelo excelente título, Curso Intensivo de Jardinagem, que, não gostando eu de escrever sobre as minhas interpretações, me vejo forçado a fazê-lo, por me parecer importante e por me surgir unívoco o seu sentido figurado, bem como o de todos os poemas da primeira parte do livro, Jardinagem, que nos conduzem para o fazer poético e correlatos, mesmo o poema Curso Intensivo, cujos sapatos vermelhos nos indicam o caminho passado e presente. Este (de)curso, junto com o título da primeira parte, Jardinagem, formam o título do livro e justificam a aprendizagem, que é bem mais extensiva do que o título parece querer dizer, mas que, na verdade, não diz, não se refere a jardinagem (o fazer poesia), mas ao caminho dos sapatos vermelhos, à intensidade da vida que eles testemunham.

A chave da solidez, presente neste livro de estreia, qualidade a que já outros se referiram, e que vim a confirmar na leitura e releitura dos poemas de MF, na contenção, no corte dos versos e no ritmo a que este pertence, na musicalidade por vezes eufónica, não só se deve ao que aqui se escreveu, irá para três anos, mas também ao que o poema Álbum, desta primeira parte, nos deixa inferir:

«Dobro a roupa
em monte
os doze meses inteiros,
e tento juntar, incapaz,
duas peças com sentido.
As que ficam,
isoladas,
sem uso provável,
escondo-as dentro de páginas brancas (…)

Em dez anos encontro
um herbário inesperado:
folhas perenes e secas (…)»


Não é preciso ser-se hermeneuta encartado, nem sequer um hermeneuta de domingo, e eu não pretendo ser uma coisa nem outra, para se entender esta primeira parte e, por maioria de razão, as outras que não se socorrem da linguagem da parte inicial, cujo desejo de ocultação funcionou, a meu ver pelo motivo de que não era o ‘ocultismo poético’ que se queria, mas um discurso que possibilitasse a diluição da autodiegese, e também que tornasse mais eficaz o que havia a dizer num conjunto que trata da própria poesia de MF, sem dúvida um tema melindroso para quem o expõe e que MF ultrapassa com mão segura, a qual deu poemas tão belos como Flores Nocturnas, Álbum e Curso Intensivo e que fazem desta parte uma das mais notáveis, senão a mais notável do livro, não fosse injusto ignorar a parte Isto não São Versos, que contém, a meu ver, o poema entre os poemas todos, Algés, mas também Areeiro e Solstício de Verão, para citar três de cada uma.

Aquele desejo de ocultação volta pontualmente, penso que pelo mesmo motivo base, na terceira parte do livro, Playlist, agora de modo mais cerrado. Trata-se de outra forma de ocultação, em que o poema já não é a metáfora maior, mas referentes dele, assim os dissimulando por necessidade de discrição ou de não confessionalismo, ou por ambas as razões. Não deixa de ser curioso, como confirmação do que escrevo, que, no poema Play, muito parcialmente acima transcrito e de uma clareza transparente, a ocultação surja, forte, em contra-mão, na página seguinte, a 28, nos dois últimos versos e um pouco no primeiro dessa página, este, no entanto, levando-me para uma interpretação sensitivamente fácil:

«(…) És tu, eu, nas polaroids que nunca disparámos da ravina(…)

(…) e uma frase com a palavra xadrez
no lugar de um complemento.»

E, se afirmo que estes dois últimos versos do poema são bastante cerrados na sua significação, é porque a palavra complemento me desvia para o campo gramatical, em virtude de um outro vocábulo, frase. Mas, se me abstiver disso, e trocar o verso do xadrês por jogo de dois, e complemento do seguinte por afago, o sentido doestes versos torna-se óbvio. De resto, esta interpretação vem confirmada num dos mais belos poemas desta parte, o poema 8, no verso “Nunca será o tempo de um jogo de tabuleiro.” Mas não é de interpretação que quero tratar, e sim da linguagem específica de alguns poemas desta parte, o 3, 4, 6 e 7, e que toca inclusive um poema tão inteligível como Play.

A segunda parte, Quatro Divisões, e a quarta, Isto não São Versos — se ando aos saltos é por conveniência —, são escritas só aparentemente com a linguagem da primeira parte, Jardinagem. Porém, neles não há sentido metafórico, são poemas de ‘ligação directa’, que não perdem de modo nenhum para as outras partes no confronto de poder sugestivo, creio que não reconhecer isto é uma ideia feita, e não poucas vezes não entender nada faz bater palmas à mesma, ou mais ainda, com queima de incenso à mistura (a propósito, estou a lembrar-me do segundo poema do livro, na pág. 10).

Finalmente, Curso Intensivo de Jardinagem é, além de um livro de poesia, uma compilação de poemas em quatro partes, cada parte bem arrumada, com o seu título e a sua especificidade. Não sabemos da cronologia dos poemas, é possível que tenha sido feita uma escolha aturada, a crer nos dez anos referidos no poema Álbum, um trabalhão, e que MF optou por estarem presentes duas linguagens. O livro não perde com isso, é um compilação e como tal é una na sua arrumação diferenciada — outros dirão que perde, mas temos de desconfiar de ideias feitas. Talvez o livro exigisse uma pequena nota final da autora sobre a feitura do livro, mais nada. No mais, já é bastante a poesia de MF ter surgido para a luz em que nos movemos. Como haveria eu de lê-la quatro vezes como li? Sem dúvida que a perda maior, no meu caso, seria não sentir a empatia imediata que senti por esta poesia.

Nota: Curso Intensivo de Jardinagem foi-me oferecido por um amigo que sabia o que estava a oferecer-me.
 
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