1.12.10

Sob os Teus Pés a Terra, de Soledade Santos



Saído há dias, portanto ainda em Novembro, com a chancela da Edições Artefacto, Sob os Teus Pés a Terra, de Soledade Santos, é, antes do mais, um livro em que a autora reúne oitenta e oito poemas seus de variada cronologia. Está dividido em quatro partes, cada parte correspondendo a um critério de arrumação de poemas, bem como as partes entre si, cada uma definida ao que vem por epígrafes. É pois um livro organizado segundo o prisma de reunião de poemas independentes uns dos outros, com uma clara unidade conseguida não apenas, nem sequer principalmente, entre eles em cada parte, mas, sobretudo, pela homogeneidade e qualidade do discurso poético. Este último é o cimento da coesão do livro e sê-lo-á sempre em livros de qualidade poética. É falsa a ideia de que um livro de poesia é mais uno se for constituído por poemas de um só assunto. É tão mais fácil uma enfraquecida ou mesmo forçada e, por isso, nula unidade monocórdica e bocejante num livro de poesia temática, quanto difícil é o contrário, um livro de poesia uno, vivo e variado, discorrendo na mesma sobre um só tema. Claro que isto não importa ao caso em questão, mas demarca e esclarece a opinião de unidade que tenho e com que me debruço em Sob os Teus Pés a Terra.

A primeira parte, disposta sob as epígrafes «Only strangers travel.» e «A verdadeira viagem é o regresso.», de Leonard Cohen e Ursula K. Le Guin, respectivamente, é constituída por treze poemas que nos remetem para o passado primordial da poeta.

O poema de abertura, Deram-me o Nome, recorda a sua mãe e a sua avó, e não é por acaso — neste livro nada é feito ao acaso — , que assumiu essa posição no livro. Transcrevo as duas últimas estrofes do poema:

"A mãe foi artesã
da alegria
(da minha — não da sua)
e passou breve
cisne ao sol
sacrificado.

E agora
eu herança
no longe dos seus olhos.
"

Estas estrofes, a meu ver, são a chave da poesia que se seguirá e que se ligam, por sua vez, em assunto, ao último verso do poema E no entanto o Dia É Fundo, na p. 21, parte 1. Mas nada é absoluto, embora possa ser a raiz que se ramifica, a causa que se desdobra já em efeitos que se acumulam, por sua vez, como causas futuras de um sentimento de ausência e melancolia, uma melancolia que nos atrai, algo semelhante a certo tipo de jazz, estou a lembrar-me das baladas de Miles Davis, de alguns pianistas em peças com bateria, contrabaixo, em swing lento (Earl Garner, por exemplo), ou um saxofone como o de Ben Webster.

E assim surgem, nesta primeira parte, simultaneamente como efeito e causa geral do tom da poesia de Soledade Santos, poemas sobre a casa da infância ou outras posteriores ou alheias, ligadas de algum modo à primeira (poemas nas p. 15, 18, 20, 22 e 23); sobre a terra natal (idem, p. 10, 17, 24 ), os amigos do passado que "mudaram de rosto" (p. 11 e 13), os mortos que cada um traz na memória e às vezes aos ombros (p. 19, de novo p. 20 e p. 21).

Alongaria em excesso este texto, já de exagerado tamanho para um blogue, se analisasse as restantes partes sob este prisma. Aliás, se me debrucei, algo miudamente, sobre a parte que abre o livro, é porque, repito, também os assuntos dela são memória de uma experiência primeira, digamos a fundação remota e principal da poesia da autora que, parece-me claro, percebendo a sua importância, colocou esses poemas na parte 1, com um sentido inquestionável de lucidez estética e da origem profunda da sua poesia. Tanto que nas três partes restantes qualquer leitor, algo acostumado a estas coisas, depressa lhes descobrirá a razão da ordem em que foram divididos e o modo como foram dispostos para leitura, pelo que, afinal, me parece inútil ocupar-me delas enquanto partes.

Trata-se de uma poesia muito mais multifacetada, nos seus meios de discurso poético, do que uma simples leitura permite aperceber. No entanto, a grande maioria dos poemas, com essa simples leitura, entra-nos rapidamente na pele e não só a entendemos como a temos por experiência nossa. Não escolho nenhum poema, abro o livro, parte 2, página 37 :

"A MÚSICA

A música acende
as partículas,
pouco
mudámos –

ao som da viola
outra vez
dezasseis anos
e a boca

comme un fruit sous la pluie."

Um recordar o tempo passado — cá está ele, o primordial, o dos dezasseis anos, o da parte 1 do livro na parte 2 —, ao escutar La Chanson de Paul, a cuja letra o último verso pertence e de que o penúltimo se adapta, sem mais que isso, o poema alheio à letra da canção, uma lembrança muito bem servida por algo que, querendo ir-se à raiz do poema, teremos de investigar. Então descobriremos que o verso em francês pertence a Chanson de Paul, que o seu cantor é Serge Regianni, conheceremos a letra da canção e o título dela, constataremos que o assunto do poema é outro. Porém, sem ser preciso nada disso — possivelmente nem nos identificaremos com a canção —, o poema entra de imediato na circulação do sangue, permita-se-me a metáfora, com aquela boca juvenil como um fruto perlado de chuva, não sem antes, no início, percebermos como a música nos desperta, com os dois primeiros versos traduzindo uma sugestão quase erótica, ou, no mínimo, de sentidos tensos, à flor da pele.

Processo idêntico de composição se passa com o poema Desesperança, que agora busquei no livro e que está na p. 80, parte 4, de que transcrevo os três versos finais:

"As rolas soltam arrulhos mas não convidam à sesta
e não caem coa calma aves nem bocas de amantes.
Tudo é mudo e branco. Nada significa."

Aqui a poeta vai buscar parte do primeiro verso O sol é grande, caem co'a calma as aves, do celebrado soneto de Sá de Miranda.

O próprio título do livro pertence a um verso da epígrafe da parte 4, de Odysséas Elytis, e este poeta entra também no verso final do poema Doce Aventura Doce, que remete para o título do poema, p. 47.

Há mais, nomeadamente no poema A Única Verdade, parte 4, p. 71, em que a poeta adapta, nos dois primeiros versos da última estrofe, uma fracção de linha das páginas iniciais de Menina e Moça. O poema tem a dedicatória "Em louvor de Bernardim Ribeiro".

Cito estes casos não só para assinalar que se trata de uma poesia culta, não fazendo gala disso, antes escondendo-se, mas também para a inserir neste tempo pós-moderno, em que as epígrafes, citações e referências semi-ocultas ou claras têm uma presença notória na poesia de hoje, e também, como sinal deste tempo, o uso pontual de línguas estrangeiras que o leitor médio entende, no caso presente o francês, o inglês e o castelhano no título do poema Tierra Sola, retirado da epígrafe de Luis Cernuda que o acompanha.

Por aqui fico hoje. O texto vai mais longo do que o imaginei. Das duas, uma: ou escrevo de mais, ou o livro exige-me que o faça mais extensamente. O que na realidade se passa é que esta poesia me impõe abordar outros aspectos dela. A causa? É um instigante livro de estreia, com uma poesia rica e muito pessoal. Fá-lo-ei amanhã.

 
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