2.12.10

Sob os Teus Pés a Terra, de Soledade Santos, #2





"A ÚNICA VERDADE

Em louvor de Bernardim Ribeiro

A única verdade é a linha que puxo na extremidade da agulha,
ponto a ponto desenho
a paciência, refaço os gestos
das minhas avós.

Quantas coisas se passavam na cabeça das mulheres em seu estrado,
em seus olhos dobrados,
e eu que nunca tive
paciência.

Mas quem fui bem vedes que o não sou já
e pois que não tenho armas para ofender,
faço desenhos de flores brilhantes com linhas
de seda paciente,
é tudo o que posso fazer
com os olhos dobrados
na noite
que não pára de crescer."


Tomo ao texto do dia anterior, socorrendo-me deste vídeo, que está na página da editora e que transpus para o You Tube, no intuito de ser utilizado aqui. O poema que transcrevo para acompanhamento de audição, é dito por Sara Felício.

Quando me referi, no que escrevi ontem, à rápida absorção por nós, leitores, do significado de muitos dos poemas de Sob os Teus Pés a Terra, estou em crer que essa rapidez em parte se deve a imagens direi fílmicas, pequenos sketches tomados da realidade como a deste poema, imagens criadoras de ambientes, do mesmo modo que os simbolistas os criavam com o som das palavras. Não há nelas nenhum hermetismo, de resto a linguagem nunca deixa, a seu modo, de tocar a realidade e de se socorrer dela.

Podia ser outro o poema acima, que me servia o mesmo fim, o de querer salientar outro aspecto formal na poesia de Soledade Santos, a musicalidade dos seus versos. É uma musicalidade macia, digamos assim, predominando as consoantes constritivas sobre as oclusivas, mais duras, servida por um ritmo muitas vezes lento, dado por sonoridades vocálicas longas, com presença sensível das nasais, o que está de acordo com o tom geral de ausência, de viver com o que há e de melancolia sem ansiedade, e com a minha comparação de ontem com slow jazz, de que é cultora pelo que percebemos no livro, enfim, uma forma de certo modo tranquila, ou, pelo menos, não sobressaltada, de estar no mundo com as pequenas coisas do dia-a-dia. E, curiosamente, no poema A Única Verdade, essa lentidão é-nos também dada pelo tamanho, único no livro, dos versos iniciais da primeira e segunda estrofes, com o seu quê plástico, muito expressivos, pois se no primeiro quase vemos a mão com a agulha a esticar a linha, no segundo imaginamos o vagar das muitas coisas que iam passando pela cabeça das mulheres, possivelmente no sossego de bordar.

E é esta falta de pressa do ser que perpassa em muitos dos poemas do livro, não sem que toque o fundo da dor, de um modo tão mais intenso quanto mais domado foi, para poder transformar-se em arte e assim se conseguir alguma redenção através do acto de criação poética. Refiro-me ao poema Pedras, na p. 88. O inverso também é verdadeiro, a alegria despreocupada, em Swing para Manhã de Sol, p. 52, dois poemas de topo entre tantos que o são também, num livro com grande regularidade qualitativa e com um leque que vai daqueles sentimentos opostos à ironia, em No silêncio da Sala Vazia de Outro, p.29, Como Um Vento, p. 39, por exemplo, e mesmo algum sarcasmo pouco acentuado, em Consolo, p. 32, passando por diversos ângulos de relação com o outro amoroso, em que os dois últimos poemas citados se inserem, além dos assuntos já referidos e os decorrentes de um sentimento de perda e de uma vida conscientemente quotidiana.

Por fim, o aspecto que quero salientar é o uso do Português, que Soledade Santos domina à vontade, neste caso como matéria-prima de arte contemporânea, e que vai do coloquial a palavras de vivência rural, a vocábulos hoje com pouco uso (porque o português falado e lido, e por isso escrito, vai tornando cada vez mais restrito o seu léxico) e à Língua culta que, afinal, envolve toda a poesia da autora, mesmo, e neste caso sobretudo, quando escreve um poema como Alguém, uma composição plena de sabedoria poética, uma composição quase clássica (enquanto contemporânea), que termina com uma expressão de sabor rural e que deixo aqui transcrito, felicitando a autora por me ter feito escrever tanto e, entre outros, desta e de outra índole, pelo atrevimento que nos retira do lento embalo em que vínhamos na leitura do poema e nos acorda para algo que afinal somos, uma pouca de terra.


"ALGUÉM

Sou as palavras e os segredos que guardei
e um estrito reservar-me nunca soube porquê
se tão completa me entrego as vezes que me entreguei.
Sou a lembrança que se vai diluindo
em olhos que julguei perenes e consanguíneos.
Sou canções poemas e tantas
malbaratadas luas. E a música e os livros
e a varanda que um arquitecto desenhou
sem saber que era p'ra mim. E que perdi.
Sou o teu sono, minha gata, redondo ainda
e já inclinado ao fim. Sou árvores, o rio que amei,
as aves, as giestas, uma pouca de terra
."
 
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