6.2.11

A Dança das Feridas



Na sexta feira passada, trouxe das Caldas da Rainha o livro de poemas A Dança das Feridas, de Henrique M. B. Fialho. Folheando-o, disse-lhe então, com alegria, que os versos eram bastante firmes. Comecei a lê-lo hoje e acabei-o há pouco, e contenho-me para não começar a escrever sobre ele. De linguagem poética inteligível, que torna inúteis o martelo e o escopro dos hermeneutas, requer porém tempo, busca de referências e releituras.

Jurar, na última página, que "Desta edição tiraram-se cento e cinquenta exemplares únicos e irrepetíveis" é que não me parece boa ideia. Entre comensais, costumo dizer de um prato de que goste antes sobre do que falte. O mesmo para o vinho. O mesmo para os livros. Alguns que desejava ter ainda os procuro em vão.

A imagem da capa é de Maria João Lopes Fernandes, que tão bem sabe traduzir livros de poesia nas suas composições.
WILLIAM GODWIN ANTES DE SE TER
CASADO COM MARY JANE CLAIRMONT

As minhas vizinhas passam 8 horas por dia
sentadas no passeio. Regateiam passados,
olham os passarinhos, cumprimentam quem
por elas passa sem passado nem futuro.
Algumas abrem as pernas para que o vento
fertilize campos há muito ressequidos,
outras queixam-se dos maridos que trazem
ao colo sob a forma de filhos.
Juntam-se a elas garotas com brincos
do tamanho das orelhas, órgãos de premeio
que nada acrescentam a surdez do mundo.
Olho-as com urna certa parcimónia.
Por vezes invejo-lhes alguns minutos
daquelas 8 horas. Um terço das horas
perdidas entre colarinhos amarrotados,
sorrisos velhos como um retrato em sépia,
papel gasto, empoeirado, a ser representado
sem cenário nem direcção artística.
Não há direcção alguma neste olhar
parcimonioso, tão invejável quão invejoso,
de quem na vida mais não pode do que
contar as horas de quem vive sentado
nos passeios por onde passa quem não tem
passado e conta pelos dedos o destino que sobra.

A Dança das Feridas, p. 55.
 
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