7.2.11

O Baralho de Tarot




Caminho lentamente pelas ruas
desta velha cidade que se inova,
lugar sem mim, de exílio e de memória
junta em outras cidades já vividas.
Refaço o corpo denso de passado,
esquecendo as vitrinas estrangeiras
do futuro e seus altos edifícios.
Vou calado, não posso lamentar-me.
Numa mesa redonda, por nove euros,
a mulher do tarot leu-me nas cartas
e disse «É grande o seu coração, mas
deseja-o sempre cada vez maior.
Prevejo que por isso ninguém há-de
caber nele, perdendo sempre o jogo.»
Respondi-lhe não jogo, nunca jogo
e sonhei com um vulto que me disse
«Nasceste para ser feliz.» Foi tudo.
E desde então julguei não precisar
de vaticínios, só de uma ilusão,
e essa tem-me falhado. Será justo?
«A sorte é sempre justa quando nossa»,
respondeu. «Não será assim», tornei.
«É que um dia num filme italiano
ouvi a alguém Nasciamo per soffrire.
Tudo isso me confunde agora, e creio
não haver esperança no baralho
que possa definir-me o coração.»
«Os corações são todos semelhantes,
batem do mesmo modo», contestou.
«Veja o sinal das cartas: somos bichos
genéticos. O seu avô poeta
passou exactamente pelo mesmo,
e agora ninguém sabe onde ele está.»

In Dispersão - Poesia Reunida, Nuno Dempster, Edições-Sempre-em Pé, 2008, p. 143-144.
 
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