Ando para escrever estas notas vai para um mês, isto é, desde que li, de uma assentada, os sessenta e oito poemas (para noventa e três páginas de texto) do livro A Dança das Feridas, de Henrique Manuel Bento Fialho, capa de Maria João Lopes Fernandes, edição de autor, 2011. Pergunto-me porquê, e a resposta que tenho é que a abordagem que o livro exige me parecia, e parece, uma tarefa de fôlego, imprópria para um blogue e para a minha preguiça prevalecente.
Só por si se compreenderia o que afirmo, se revelar que A Dança das Feridas é um tratado notável sobre o amor, o que pressupõe, pela variedade de assuntos, uma grande complexidade de exposição escrita. Não foi, no entanto, esta característica que me fez evitar a abordagem que o livro me impunha e ter escolhido o que afinal agora escrevo. Essa exigência está em cada um dos poemas, que têm como base pares de amorosos da Cultura ou a ela ligados como nos poemas Elisabeth Taylor aos Seus Maridos, Drácula a Mina, etc., com excepção do primeiro e do último poema, que balizam o livro, o primeiro como possibilidade do amor no presente:
"(...) Se eu soubesse dançar / convidava-te para um tango, / guiava-te nos labirintos do coração. / Voaríamos sobre os campos / como num desenho animado. / Seríamos uma ameaça / para a estabilidade nacional. (...)"
e o último, como final futuro:
"(...) Desenhar-te-ei um botão de rosa no umbigo / uma corola em cada mamilo. // Só para cheirar, amor. Só para cheirar a morte. (...)"
E entre estes dois poemas de abertura e fecho, dispostos como os limites do amor, vem uma galeria de sessenta e seis poemas com os nomes de pares, como disse de personagens da Cultura ou a ela ligados, poemas que tanto poderão imaginar-se cartas, ou falas, ou apenas poemas, e assim são tudo, não há necessidade de quem lê procurar modos de comunicação, porque os poemas cumprem-se na leitura.
No entanto, e aqui entramos noutro campo, o da análise, o modo encontrado para conceber os poemas deste livro é o do primeiro nome do título se dirigir ao segundo ou segundos, Adão a Eva, Ives Montand a Simone Signoret, Picasso às Suas Mulheres, etc., por carta ou por fala, umas vezes quase diálogo, devido à presença sentida do outro, ou por monólogo, na sua ausência. Daí que nos nomes se entreponha a preposição a em todos os títulos, menos dois, As Ossadas de Mantova e Declaração. É evidente que a escolha tem a sua razão estética. Com este tratamento, o autor ganha autonomia e distanciação pessoal, e permite-lhe discorrer poeticamente, ao mesmo tempo que facilita abrir ao leitor as portas do poema para que dele se aproprie. Mesmo quando escreve na primeira pessoa, o eu não é o do poeta, mas o da figura em nome de quem escreve. É um eu que não é um eu, mas um ele. Ora esta distanciação no tema central da vida, que é o amor, permite uma cumplicidade muito eficaz com o leitor. Isto não é habilidade na sua acepção vulgar. Para me exprimir com mais clareza, não são as habilidadezinhas do biscate, que as há por aí em poesia, digamos assim, de honestidade duvidosa. É uma escolha estética consciente e lúcida de saber o ofício que a poesia tem sempre que ser.
O autor medita no amor e exemplifica-o, mais do que relata poeticamente factos biográficos, dos quais, de resto, se aproveita para uso da sua própria máscara, como, entre muitos, num poema de excelência, Billie Holiday a Louis McKay, Ao lê-lo, parece escutar-se nele a voz da própria cantora:
"Dizem que conheci o lado negro da vida,
como se o meu canto pudesse vir
de níveos, diáfanos e angelicais submundos.
Conheci tão-somente a vida,
o desprezo dos tugúrios,
a voragem dos salões.
Tive por companhia o excesso
e nem tu imaginas quanto me arde
nas feridas a saliva dos teus beijos.
Já não espero do mundo doces melancolias,
nem cantos que me salvem da perdição,
apenas melodias tristes
que me aquietem os nervos
enquanto nos teus braços não encontro
o consolo das teclas
onde os dedos vão buscar
embalo para o sono. Uma canção."
Este poema é um exemplo de superação do facto biográfico. Quem foi L. McKay? Muitos dos que leram este poema não sabem quem foi McKay, mas se dissermos que era o marido de Billie, o poema ainda se afasta mais da vida de Lady Day, ganhando independência e universalidade. Não há nenhuma contradição no que digo, de resto coisa que me parece fácil de entender, à luz do tema do livro.
O poema Billie Holiday a Louis McKay tem mais sobre que escrever. Os poemas de qualidade parecem inesgotáveis na sua análise. Para além de uma linguagem poética claríssima de sentido, o que prova no que sempre teimo, que um discurso inteligível, honesto, sem nada na manga, pode suscitar e suscita em poemas conseguidos uma funda expressão poética, com a vantagem de todos o entenderem — para além disto, dizia, quero chamar a atenção para o perfeito desenvolvimento do poema na sua estrutura interna e formal. Repare-se em como o poema está divido: em três estrofes. E leia-se o poema com uma pausa um pouco mais longa do que é hábito entre cada estrofe. O que sentimos? Provavelmente o que poeta sentiu, um grande prazer no desenvolvimento do assunto, na estrutura interna que, mantendo a individualidade das estrofes, as une e as exige separadas na forma. Há aqui um balanço que nos enleia e me recorda canções de Billie Holiday.
Entende-se agora a dificuldade que senti em escrever sobre este livro e que revelei no início. Se escrevi o que escrevi sobre um só poema, quanto teria de escrever sobre muitos outros poemas de qualidade equivalente? Claro que poderia ater-me ao geral, desvendar títulos, pares hetero e pares homo, falar do discurso poético sempre inteligível, do desencanto e da dureza deste tempo, que atravessam o livro, mas também de generosidade, e da leveza que nos surpreende em poemas como André Gorz a Dorine Keir, filósofo, activista e poeta austríaco e sua mulher durante sessenta anos, um caso de amor como poucos. André e Dorine passavam dos oitenta quando decidiram pôr termo à vida, por doença desta, injectando-se mutuamente com não sei que veneno.
"Peguei no guardanapo de papel
ao qual limpaste o batom
e estendi os contornos dos teus lábios
sobre o tampo da mesa.
Depois pousei a cabeça
sobre o guardanapo,
assim de lado,
com o ouvido bem junto
ao contorno dos lábios,
e sonhei que me sussurravas
um segredo ao ouvido.
Quis convencer-me
que ainda não tinhas partido,
que a sala ainda estava cheia de ti."
A Dança das Feridas, sendo um livro temático, é-o muito original e variadamente, sem nunca se repetir e sem cair na esparrela da monotonia de não poucos livros de poesia temática , monocórdicos e chatos. E quantos que os escrevem deveriam vigiar-se e obrigar-se a ter o juízo auto-crítico em ordem. Julgo ser fácil inferir que muita desta poesia é feita para se ter assunto para poemas, vulgo inspiração. A todo o custo. Escrevo isto para melhor destacar a qualidade deste livro, que é de leitura obrigatória para quem goste de poesia, e a poesia sobre o amor, como a de A Dança das Feridas, ainda mais apetecível se torna. Lamento é que o autor tenha decidido editar o livro uma só vez, sem reedição futura em qualquer caso, de autor ou de editora. É que a tiragem foi curta. Mas isso, como se costuma dizer, é com cada qual, embora o livro mereça muitos mais bons leitores, e o bom leitor de poesia é aquele que a entende e se revê nela. Aliás, suponho haver, para este livro, bons leitores em quantidade, dado o tema, a qualidade dos poemas e a sua inteligibilidade.
Só por si se compreenderia o que afirmo, se revelar que A Dança das Feridas é um tratado notável sobre o amor, o que pressupõe, pela variedade de assuntos, uma grande complexidade de exposição escrita. Não foi, no entanto, esta característica que me fez evitar a abordagem que o livro me impunha e ter escolhido o que afinal agora escrevo. Essa exigência está em cada um dos poemas, que têm como base pares de amorosos da Cultura ou a ela ligados como nos poemas Elisabeth Taylor aos Seus Maridos, Drácula a Mina, etc., com excepção do primeiro e do último poema, que balizam o livro, o primeiro como possibilidade do amor no presente:
"(...) Se eu soubesse dançar / convidava-te para um tango, / guiava-te nos labirintos do coração. / Voaríamos sobre os campos / como num desenho animado. / Seríamos uma ameaça / para a estabilidade nacional. (...)"
e o último, como final futuro:
"(...) Desenhar-te-ei um botão de rosa no umbigo / uma corola em cada mamilo. // Só para cheirar, amor. Só para cheirar a morte. (...)"
E entre estes dois poemas de abertura e fecho, dispostos como os limites do amor, vem uma galeria de sessenta e seis poemas com os nomes de pares, como disse de personagens da Cultura ou a ela ligados, poemas que tanto poderão imaginar-se cartas, ou falas, ou apenas poemas, e assim são tudo, não há necessidade de quem lê procurar modos de comunicação, porque os poemas cumprem-se na leitura.
No entanto, e aqui entramos noutro campo, o da análise, o modo encontrado para conceber os poemas deste livro é o do primeiro nome do título se dirigir ao segundo ou segundos, Adão a Eva, Ives Montand a Simone Signoret, Picasso às Suas Mulheres, etc., por carta ou por fala, umas vezes quase diálogo, devido à presença sentida do outro, ou por monólogo, na sua ausência. Daí que nos nomes se entreponha a preposição a em todos os títulos, menos dois, As Ossadas de Mantova e Declaração. É evidente que a escolha tem a sua razão estética. Com este tratamento, o autor ganha autonomia e distanciação pessoal, e permite-lhe discorrer poeticamente, ao mesmo tempo que facilita abrir ao leitor as portas do poema para que dele se aproprie. Mesmo quando escreve na primeira pessoa, o eu não é o do poeta, mas o da figura em nome de quem escreve. É um eu que não é um eu, mas um ele. Ora esta distanciação no tema central da vida, que é o amor, permite uma cumplicidade muito eficaz com o leitor. Isto não é habilidade na sua acepção vulgar. Para me exprimir com mais clareza, não são as habilidadezinhas do biscate, que as há por aí em poesia, digamos assim, de honestidade duvidosa. É uma escolha estética consciente e lúcida de saber o ofício que a poesia tem sempre que ser.
O autor medita no amor e exemplifica-o, mais do que relata poeticamente factos biográficos, dos quais, de resto, se aproveita para uso da sua própria máscara, como, entre muitos, num poema de excelência, Billie Holiday a Louis McKay, Ao lê-lo, parece escutar-se nele a voz da própria cantora:
"Dizem que conheci o lado negro da vida,
como se o meu canto pudesse vir
de níveos, diáfanos e angelicais submundos.
Conheci tão-somente a vida,
o desprezo dos tugúrios,
a voragem dos salões.
Tive por companhia o excesso
e nem tu imaginas quanto me arde
nas feridas a saliva dos teus beijos.
Já não espero do mundo doces melancolias,
nem cantos que me salvem da perdição,
apenas melodias tristes
que me aquietem os nervos
enquanto nos teus braços não encontro
o consolo das teclas
onde os dedos vão buscar
embalo para o sono. Uma canção."
Este poema é um exemplo de superação do facto biográfico. Quem foi L. McKay? Muitos dos que leram este poema não sabem quem foi McKay, mas se dissermos que era o marido de Billie, o poema ainda se afasta mais da vida de Lady Day, ganhando independência e universalidade. Não há nenhuma contradição no que digo, de resto coisa que me parece fácil de entender, à luz do tema do livro.
O poema Billie Holiday a Louis McKay tem mais sobre que escrever. Os poemas de qualidade parecem inesgotáveis na sua análise. Para além de uma linguagem poética claríssima de sentido, o que prova no que sempre teimo, que um discurso inteligível, honesto, sem nada na manga, pode suscitar e suscita em poemas conseguidos uma funda expressão poética, com a vantagem de todos o entenderem — para além disto, dizia, quero chamar a atenção para o perfeito desenvolvimento do poema na sua estrutura interna e formal. Repare-se em como o poema está divido: em três estrofes. E leia-se o poema com uma pausa um pouco mais longa do que é hábito entre cada estrofe. O que sentimos? Provavelmente o que poeta sentiu, um grande prazer no desenvolvimento do assunto, na estrutura interna que, mantendo a individualidade das estrofes, as une e as exige separadas na forma. Há aqui um balanço que nos enleia e me recorda canções de Billie Holiday.
Entende-se agora a dificuldade que senti em escrever sobre este livro e que revelei no início. Se escrevi o que escrevi sobre um só poema, quanto teria de escrever sobre muitos outros poemas de qualidade equivalente? Claro que poderia ater-me ao geral, desvendar títulos, pares hetero e pares homo, falar do discurso poético sempre inteligível, do desencanto e da dureza deste tempo, que atravessam o livro, mas também de generosidade, e da leveza que nos surpreende em poemas como André Gorz a Dorine Keir, filósofo, activista e poeta austríaco e sua mulher durante sessenta anos, um caso de amor como poucos. André e Dorine passavam dos oitenta quando decidiram pôr termo à vida, por doença desta, injectando-se mutuamente com não sei que veneno.
"Peguei no guardanapo de papel
ao qual limpaste o batom
e estendi os contornos dos teus lábios
sobre o tampo da mesa.
Depois pousei a cabeça
sobre o guardanapo,
assim de lado,
com o ouvido bem junto
ao contorno dos lábios,
e sonhei que me sussurravas
um segredo ao ouvido.
Quis convencer-me
que ainda não tinhas partido,
que a sala ainda estava cheia de ti."
A Dança das Feridas, sendo um livro temático, é-o muito original e variadamente, sem nunca se repetir e sem cair na esparrela da monotonia de não poucos livros de poesia temática , monocórdicos e chatos. E quantos que os escrevem deveriam vigiar-se e obrigar-se a ter o juízo auto-crítico em ordem. Julgo ser fácil inferir que muita desta poesia é feita para se ter assunto para poemas, vulgo inspiração. A todo o custo. Escrevo isto para melhor destacar a qualidade deste livro, que é de leitura obrigatória para quem goste de poesia, e a poesia sobre o amor, como a de A Dança das Feridas, ainda mais apetecível se torna. Lamento é que o autor tenha decidido editar o livro uma só vez, sem reedição futura em qualquer caso, de autor ou de editora. É que a tiragem foi curta. Mas isso, como se costuma dizer, é com cada qual, embora o livro mereça muitos mais bons leitores, e o bom leitor de poesia é aquele que a entende e se revê nela. Aliás, suponho haver, para este livro, bons leitores em quantidade, dado o tema, a qualidade dos poemas e a sua inteligibilidade.