A primeira impressão que retirei de Estrela de Bizâncio, último livro publicado de Amadeu Baptista, mas não o último a ser escrito, foi uma instigante surpresa em todos os aspectos da sua forma, única em quanto conheço do autor, a primeira das quais é a linguagem poética em que o livro vem escrito, plena de imagens, de símbolos, de descrições do real e de cenas fílmicas, por vezes de grande estranhamento, que dão uma atractiva vivacidade ao texto, exigindo o seu conjunto que procuremos colocar-nos dentro da torrente genesíaca do poeta, possuído, é o termo, pelo próprio brotar das palavras, como se fossem escritas sob o efeito onírico de quanto o cérebro vai de si captando, transformando e inscrevendo na folha como arte primacial. Tanto mais que esse posicionamento não exige esforço de maior, não exige sermos hermeneutas, a linguagem, que parece oculta, afinal torna-se clara como uma revelação. Tenho para mim que buscar a identificação com o sentir-pensar-escrever do poeta é o melhor modo de o honrar e de o compreender, ou seja, de comungar da sua essência. Uma leitura próxima do que o poeta quis expressar é para o mesmo a remissão de quanto foi preciso, em experiência, para se chegar ao significado primeiro do texto, que é o do autor. Este modo de leitura, por outro lado, permite separar o legítimo, como é o caso de Estrela de Bizâncio, das tentativas apócrifas de reproduzir o presente tipo de discurso poético na sua imagética, que, na origem, é íntimo e imanente, e portanto de inimitável autenticidade. E tanto assim é que sabemos quanto desentendimento vai por aí, impresso, e mais ainda, louvado. Creio, no entanto, que o louvor ao apócrifo não passa de desejo de botar figura, o mesmo é dizer, de ignorância poética e do gosto. Isto serve também aos louvados, que, macaqueando o género de imagética de que o autor se serve, pensam criar cinco ou seis hipóteses diferentes de leitura e, vai-se a ver, não criaram nenhuma, condensando, no entanto, o seu programa num grito, parafraseando eu um evento que morreu há cinco anos: – É a polissemia, estúpido! Escrevo isto para separar as águas. Sob Estrela de Bizâncio corre um rio caudaloso, que nos leva a todos com muito do que nós somos, e aí é que reside, a meu ver, a integridade da poesia.
Como escrevi no início, não é só a linguagem de Estrela de Bizâncio que surpreende. É o ambiente que a trama de uma guerra convencional vai criando porque, estando tudo de acordo no livro, nada da forma ou da abordagem dos subtemas nele se estranha. Refiro-me ao carácter simbolista que Amadeu Baptista imprimiu a diversas passagens do texto, nomeadamente a cor algo escura e melancólica dos pensamentos da personagem central, feminina (outra surpresa), apoiado na tradição que nos informa sempre, aqui mais visível em Húmus do que em Clepsidra, e, por consequência, em Baudelaire. Deixo este exemplo, entre vários, e, mais do que nos exemplos que se wencontrem, a claridade crepuscular com que, no fim da leitura, o livro nos deixa como luz:
“No quarto não há sombra, nenhum objecto estende sombra em volta, como se a luz das coisas fosse bruma difusa sobre a terra e os cadáveres fossem, apenas, quieto sobressalto (…)" (1)
Assim, Amadeu Baptista inova a tradição por dela se ter servido no contexto de uma linguagem poética do nosso tempo. Recua mesmo a um sugestão do romantismo de Goya, que faz lembrar Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808:
"O pelotão de fuzilamento prepara as armas, coloca-se em posição, dispara, e os homens rodam sobre si e caem no lento movimento desse esgar. (...)" (2)
Temos ainda a forma em que o livro vem escrito. Poema em prosa ou texto prosa poética? Não comungo da ideia de que a classificação de um texto é coisa despicienda, e ainda menos em Estrela de Bizâncio. Também não direi, neste caso, que é uma interpenetração de formas, a não ser na medida em que um texto, neste caso um livro, em prosa poética é invadido pela linguagem da poesia. A própria natureza desse tipo de prosa o exige, La Palisse não o diria melhor. Para mim é um livro de ficção – o ambiente de guerra e as suas personagens e acontecimentos definem-no como tal, tanto mais atraente quanto se pode confundir com um poema em prosa, não por esta inadvertida confusão, mas porque, a meus olhos, lhe realça o valor de ficção em prosa poética, tornando assim mais visível Estrela de Bizâncio como obra singular.
(1) - Estrela de Bizâncio, Amadeu Baptista, Livro do Dia, 2010 - p. 25.
(2) - Idem, p. 24
Como escrevi no início, não é só a linguagem de Estrela de Bizâncio que surpreende. É o ambiente que a trama de uma guerra convencional vai criando porque, estando tudo de acordo no livro, nada da forma ou da abordagem dos subtemas nele se estranha. Refiro-me ao carácter simbolista que Amadeu Baptista imprimiu a diversas passagens do texto, nomeadamente a cor algo escura e melancólica dos pensamentos da personagem central, feminina (outra surpresa), apoiado na tradição que nos informa sempre, aqui mais visível em Húmus do que em Clepsidra, e, por consequência, em Baudelaire. Deixo este exemplo, entre vários, e, mais do que nos exemplos que se wencontrem, a claridade crepuscular com que, no fim da leitura, o livro nos deixa como luz:
“No quarto não há sombra, nenhum objecto estende sombra em volta, como se a luz das coisas fosse bruma difusa sobre a terra e os cadáveres fossem, apenas, quieto sobressalto (…)" (1)
Assim, Amadeu Baptista inova a tradição por dela se ter servido no contexto de uma linguagem poética do nosso tempo. Recua mesmo a um sugestão do romantismo de Goya, que faz lembrar Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808:
"O pelotão de fuzilamento prepara as armas, coloca-se em posição, dispara, e os homens rodam sobre si e caem no lento movimento desse esgar. (...)" (2)
Temos ainda a forma em que o livro vem escrito. Poema em prosa ou texto prosa poética? Não comungo da ideia de que a classificação de um texto é coisa despicienda, e ainda menos em Estrela de Bizâncio. Também não direi, neste caso, que é uma interpenetração de formas, a não ser na medida em que um texto, neste caso um livro, em prosa poética é invadido pela linguagem da poesia. A própria natureza desse tipo de prosa o exige, La Palisse não o diria melhor. Para mim é um livro de ficção – o ambiente de guerra e as suas personagens e acontecimentos definem-no como tal, tanto mais atraente quanto se pode confundir com um poema em prosa, não por esta inadvertida confusão, mas porque, a meus olhos, lhe realça o valor de ficção em prosa poética, tornando assim mais visível Estrela de Bizâncio como obra singular.
(1) - Estrela de Bizâncio, Amadeu Baptista, Livro do Dia, 2010 - p. 25.
(2) - Idem, p. 24