30.6.11

Não se Emenda, a Chuva, de António Cabrita


António Cabrita (n. 1956, Pragal, Almada), a viver actualmente em Moçambique, Maputo, é um criador multímodo, a sua obra vai da prosa de ficção à poesia, de peças de teatro representadas a guiões passados a película e ao ecrã das TV e a textos de crítica de cinema e de literatura, aqui como jornalista vinte e tal anos, dos quais dezoito no Expresso. Assina o blogue Raposas a Sul, que deixo recomendado. Sou seu cliente desde que surgiu.

Em Maio passado, no Maputo, António Cabrita lançou o livro de poesia Não se Emenda a Chuva, editado pela Livro de Horas, do Porto.

Não se Emenda, a Chuva é uma colectânea de poemas dividida em três partes, A Razão Provisória, Não se Emenda, A Chuva e Um Rio Nada Doméstico. Nesta divisão há uma criativa arrumação que contribui para a unidade do livro, como veremos adiante.

A primeira parte é constituída por oito sonetos irregulares, sem metro nem rima, mas respeitando aparentemente a divisão canónica do soneto italiano em duas quadras e dois tercetos. Digo aparentemente porque a liberdade vai mais além, e ultrapassa as estrofes certas no seu fecho de período ou oração. A liberdade aqui só acaba no décimo quarto verso. Cinco destes oito sonetos têm a ver de algum modo com a escrita, a poesia, os livros.

A segunda parte é constituída por 55 poemas, salvo erro de contagem, e nesta parte estão poemas de uma liberdade muito viva (porque verdadeira), que mistura, num só poema, versos e prosa e, noutros, surgem versos com 19, 20 sílabas métricas, a cobrir quase duas linhas, que pensaríamos ser prosa, caso não tivéssemos sentido neles o ritmo de verso. Nesta parte nota-se também o cuidado do poeta na arrumação dos poemas.

A terceira e última contém sete sonetos semelhantes na forma aos da primeira parte e tem uma liberdade adicional, que é a do soneto 1 se ligar, em assunto e tempo, ao 2, e de o 3 se ancorar, no mesmo tempo, ao 2 pelo uso, no início, de uma simples copulativa “E lembro-me das amoras nas azinhagas, (…)”, e este, por sua vez, com o final do verso a terminar em ponto-e-vírgula, o que não indica o final, e assim passar para o 4, ligando-se este ao 5 pelo mesmo assunto e tempo. Os sonetos 6 e 7 vão mais longe nesta inventiva. A única separação que há entre eles é o algarismo do soneto e a página, tanto que o 7 começa com minúscula, quando nunca é usada no início dos sonetos pelo poeta: “e não sei apontar: poejo, estragão, tomilho, (…)” . Parece pois claro que, com este desenvolvimento sequencial dos sonetos, o autor quis fazer dois poemas, um com os cinco primeiro sonetos e outro com os dois últimos, o que cumula a criatividade também desta parte. Não quero deixar passar, sem prejuízo das restantes, a grande beleza desta parte, cujos dois últimos sonetos num só poema coroam com chã e lúcida grandeza o final do livro.

Temos assim uma colectânea limitada por duas partes de sonetos, com outra vasta, o miolo ao centro, de que aquelas são as continentes. Consegue-se só por aqui uma unidade da qual, hoje em dia, alguns exigem mais, a unidade sequencial do princípio ao fim, ou seja, um livro temático. É uma ideia feita. Um livro de poesia não é nenhum romance. Sem negar o livro temático de poesia (como poderia fazê-lo, se tenho um no prelo?), não se pode levar a sério tal pretensão. As modas dão no que dão, e o resultado já se vê há anos, na monotonia bocejante de páginas e páginas sem imaginação e sem pensamento amplo, repetitivas até à não leitura. Mas não é só na disposição do livro, de resto cuidada pelo poeta como já se disse, não é só aí que a unidade se consegue. No caso de poetas, salvo seja com território marcado, como é o caso, é o próprio estilo, digamos assim, para abreviar, o cimento que dá coesão ao livro. É disto que muitos não se lembram. Enfim, somado e conferido, o livro é um poliedro com muitas faces, mas é um poliedro com a força de uma voz própria a uni-lo.

Uma das marcas fundas que retirei desta poesia é a irrequieta inquietação, inquietação da natureza humana, naturalmente, mas também irrequietude de quem busca e corre por fora e por dentro de si mesmo, tornando a poesia muito viva, aliás – abalanço-me a dizer -, de acordo com os múltiplos modos de expressão na obra de António Cabrita, que reflectem a forma de estar do autor. Esta irrequietude, este olhar e estar não se definem em poemas, neste ou naquele, mana da natureza da própria poesia, polifacetada de assuntos, afirmativa, sem inquirições psicológicas do eu enquanto indivíduo e caso pessoal. Porque mesmo quando se aborda a si mesmo, distancia-se, e fá-lo com frequência pela ironia e também pelo sarcasmo consigo mesmo. P. 13:

1
Como se esfolasses um animal,
atiras-te ao verbo sem
dares conta: é ele quem
te impele à porta giratória

por onde se acede ao salão
que anicha, em cima
da secretária de mogno,
a tua solidão empalhada,
(…)”


Além dessas, são vários as formas que usa para distanciação, entre as quais a descrição de um ambiente que vai diluir a importância do sujeito, como aqui, p.16:

4
Ágrafa a noite agrafa a manhã
à luz: delata as mitologias
que às golfadas
levantaram o arco da ilusão.


A morte rápida é castigo
muito leve para os ímpios,
morrerás exilado
errante, longe do solo natal

- o salário que um ímpio
merece escreveu Eurípedes,
(…)”


E o uso da segunda pessoa do singular, como em ambos os trechos acima e em muitos outros poemas, mas também o humor, neste estupendo poema, p.23:

1
O Artur, com uma pedrada, vazou o olho a uma
galinha

e corremos até onde as forças nos levaram, estriados
de riso.

Ali, nos perdidos contrafortes do aqueduto, mimámos
o espanto das vizinhas,

o seu horror hipnótico. A quem chegou o clique
da Rita

a assistir a tudo da janela da mansarda?

As suas sardas ocuparam de repente as nossas

mãos que sacudiam
num calafrio as exauridas pilas de cão.



Com ou sem estes aspectos, que não esgoto e que são formas de despessoalizar a poesia, de a dar pronta a ser um espelho em que o leitor se vê, surgem poemas que são a essência de uma situação poética – essência entenda-se o centro do ser, que de súbito se descobre, e essência também porque tudo se disse neles de forma concentrada, sem se poder dizer menos nem mais. P. 36:

2
Não há noite, não há dia mas uma espécie de crepúsculo [vermelho.
E perdeu-se a disposição para a pilhéria.
Que o mito não é uma história contada por amor à camisola
e antes o susto que nos escama o peixe de ontem e põe [a contemplar
o âmago de um caviloso silêncio.
Florescem os mortos e não há palavra que perfure
o fogo e nos abstraia
quando a queimadura laça na omoplata o coto
de uma asa. Não há noite nem há dia, na descida.


A poesia deste livro é muito vasta de assuntos, revela um campo de visão invulgar a quem não conheça a poesia de António Cabrita. Esta característica, a par da frequente surpresa que nos colhe, são das maiores atracções para o leitor, porque faz o livro estoirar de vida e por isso se lê com o prazer da gula. Nela passam poemas sobre a escrita, a leitura, a pintura em poemas não ecfrásticos, p. 30:

2
No estudo para um retrato de Van Gogh a sombra
da figura está truncada, carcomida a meio por uma
fome branca.

É um fruto do acaso mas que realça o que dá pertinácia
à pintura: um instinto com pernas desamarra de
si o torso das forças racionais.

O que o pintor de corvos não desdenharia.



o amor e ainda o amor e o seu quotidiano, p. 43:

3
(…) Descrever-te os pássaros na Macaneta?
Precisaria de ser o flautista de Hamelin,
que pelo sopro arrastou ratos,
crianças, chaminés e soldadinhos de chumbo.

Mas olha, tinhas razão, devia ser proibido adormecer
sem ter o mar por fundo.

Noutras condições parece-me sempre o amor
modesto.



a insatisfação dos dias, a sua condição de português emigrado em Moçambique, a auto-derrisão, a sorte no presente de que Camões fala, a casa, p. 8:

6
Mais meia-hora da carga valente (…)
A Luna dançou à chuva, a Jade adormeceu no fulcro
da tempestade.
Eu, dado o adiantado da água temi que o dragão
sem freio do tempo nos mergulhasse, (…)

O Capão, depois de examinar no tecto a qualidade
da construção – nem uma gota digna de um dedal –,
mais tranquilo, explica à Isa as manobras do seu exercício
de Sudoku.
(…)”

E ainda o desejo, a indagação ontológica, o tempo, a morte, Portugal, p. 39:

“(…)Sonhei com um país de gagos.
Era o meu. Os gagos nasciam das árvores
e amavam-se lambendo o intervalo das sílabas.


Não se Emenda, a Chuva não é um livro só de poeta, é um livro de um poeta que busca e exerce a multi-expressão criativa, como se escreveu no início. Não tanto por essa busca e exercício quanto pelo que indiciam. A insatisfação permanente, a irrequietude de espírito, a vivacidade tão à mostra, somadas à experiência, são a causa e a garantia deste excelente e tão variadamente rico livro de poesia.
 
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