18.11.11

De Re Rustica, de H. G. Cancela


De Re Rustica, de H. G. Cancela (n. 1967), romance editado no corrente ano pela Edições Afrontamento, tem o título da obra latina homónima de Columella, (1) que trata de política económica, administrativa e de trabalho (regime esclavagista) e de técnicas da agricultura e pecuária nas villae da Roma imperial. O título latino no romance de H. G. Cancela pressupõe uma comparação crítica, que se irá descobrindo com o avanço da leitura.

Para meu uso e facilidade de exposição, distingo no romance duas partes, que graficamente nada tem a separá-las, facultando à leitura apenas um todo uno. Sucintamente, e porque não penso deter-me na trama mais do que o necessário, a primeira parte com as deambulações de automóvel do narrador na primeira pessoa, médico, quarenta e quatro anos, saído há pouco da prisão e que não exerce a profissão, sem explicações desnecessárias: o narrador não quer abordar a razão de ter sido condenado, porque afinal a literatura e a arte em geral também são uma questão de bom gosto. Viaja sem destino pelo país e por Espanha, sem mais nenhum sentido revelado do que esse mesmo, o de aparentemente não haver sentido. Afirmo-o por me parecer importante para a ambiência do romance o acaso em que viaja, somado ao vazio que dele decorre e ao da companhia que arranjou pelo caminho.

A segunda parte  inicia-se a seguir ao trecho introdutório do dito capítulo VI (p. 92), quando o médico e narrador chega à casa onde o pai vive e que, por herança, também lhe pertence. As duas partes virtuais, digamos assim, estão unidas por um forte laço comum, que é a nudez árida das relações que regem as personagens, além da evolução da trama que assim exige o texto.

O ambiente de vazio pode parecer originar-se na condição de um recluso que, cumprida a pena, se vê libertado. Escrevi pode parecer originar-se. Se de facto é essa a ponta inicial do fio da narrativa, outro e mais fundo efeito surge e vai envolver o livro todo com a forte marca da desolação, dos cenários e cenas devastadas, profundamente influenciadas pela ausência de razões de vida e pela degradação das personagens, em que se reconhece a contemporaneidade do mundo que o autor fixa e, através dela, dá testemunho de um tempo, o nosso, marca de água da literatura, e não só, mais visível em períodos históricos convulsos e de clivagem, como me parece ser o que atravessamos.

A aludida secura do romance fez-me recordar Citizen Kane, sem que o livro tenha o quer que seja do filme, senão a coincidência desse deserto humano que une ambas as obras na sua comparação, inclusive no único afloramento de alguma solidariedade humana, que no filme é representada pela cena do homem que pede um cigarro e o recebe; e em De Re Rustica, pelo momento de muito velada ternura da mãe pelo filho e narrador. Mas H. G. Cancela vai mais longe do que Wells na desolação dessas relações. Não só não atribui nomes às personagens, o que as afasta mais da temperatura basal humana, passe tal metáfora, mas também da boca do médico e narrador não sai mais nada que as identifique, senão o homem, a mulher, a rapariga. Tão-pouco se lê que pronuncie as palavras pai, mãe, tia, na relação com eles, confirmando assim, com particular eficiência, o deserto de vidas ausentes de qualquer emoção.

Como sinergia que aprofunda a secura omnipresente, surge na primeira parte a recepcionista de um dos muitos hotéis onde, no seu viajar, o médico se hospeda. É uma rapariga de lábio leporino, de cama fácil, destituída de carácter, sem nenhum atractivo em particular, deserta de espírito, de inteligência e de vontade, o lábio fendido causando mesmo algum mal-estar na leitura, pela inexistência de alguma qualidade que pudesse fazer ignorar o defeito congénito. É este rapariga, degradada física e moralmente, que se deita quer com o médico, quer com o gerente do hotel onde trabalha, que, depois de despedida por este, vai acompanhar o narrador nas viagens pelo país e por Espanha, e em casa dele e da família ascendente, até final do livro. Aliada a este ser humano desqualificado, está a abolia do médico, face ao tempo que vive e ao espaço que atravessa, misturados com a ausência de afecto ou de desafecto pela rapariga, potenciando ainda mais o que me parece ser o leitmotiv do romance, de tal modo acompanha, a par e passo, o desenvolvimento do tempo narrativo: como um poder ou causa oculta, algo anulou o calor de que as personagens se viram previamente destituídas antes de o serem no romance. Como referi, a causa mais visível é a condição de ex-presidiário do médico e que terá pré-existido como parte do projecto de ficção. Isso porém seria determo-nos no imediato. Um dos aspectos marcantes do romance é abarcar o tempo em que veio e suas circunstâncias, causas e efeitos.

Na segunda parte, pode pensar-se de início que o ambiente de seca solidão e também de lixo humano irá atenuar-se. No entanto, o desenvolvimento começa a ganhar volume e depressa nos desengana. O autor não sai do registo em que vinha e aprofunda a degradação com a entrada do pai, homem sem escrúpulos, antigo caseiro da exploração agrícola, que enviuvou e casou com uma das duas abastadas herdeiras da quinta (da villa, digo, sublinhando agora o título latino), fazendo na irmã dela e cunhada este único filho, o médico, e delapidando ao jogo uma boa parte da riqueza da propriedade, de que restou uma vaca, a casa e as terras incultas. O pai pertence à qualidade de seres de que a ex-recepcionista faz parte e com a qual, aliás, se deita, perante a indiferença do filho. Tudo isto para sublinhar a desertificação extrema dos seres humanos com que H. G. Cancela consegue o pleno do que me parece ser o seu mais fundo desiderato, a narrativa de gente sem salvação e, por amostra, de uma humanidade sem destino. É não só um romance deste tempo universal, como também de forte identidade portuguesa, pelos cenários e personagens, e por dar a mostrar, sem sabiamente propor que se note, a morte da agricultura do país, quer pelo avanço da construção em solos férteis, quer, sobretudo, por razões de ordem política e económica que o romance não cita nem era preciso que citasse, seria mesmo prejudicial fazê-lo. A ruína, em que a dita segunda parte evolui e que a mãe quer em vão remediar, basta para o inferir. E delapidação ao jogo da riqueza criada não chega para ocultar a razão última dessa morte nacional, em que a villa se insere, e aqui mais uma vez se sublinha uma razão para o título latino.

O uso exclusivo de minúsculas depressa nos habitua, e a ausência de pontos de interrogação, nas falas que são perguntas, curiosamente aviva o desinteresse que embebe em geral as personagens, quando a conveniência não as põe a litigar entre si.

De Re Rustica é um romance que se distingue pela qualidade densa, mas não monótona ou com linguagem encriptada, das análises da personagem narradora; pelo notável hausto da intriga, que se desenvolve como um longo e tenso final ou réquiem antecipado na dita segunda parte (com 241 páginas) e nos agarra à leitura até ao fim; pela identificação profunda com o tempo em que vivemos; em suma, pelo carácter de obra conseguida e diferente, sem artifícios e segura na sua clara honestidade de sentido.

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[1] Columella, Lucius Junius Moderatus, De Re Rustica.

Em 1514, foi impresso em Veneza  o título Libri De Re Rustica, compilação  que reúne as obras  sobre agricultura e outras actividades relacionadas com o campo romano (política, economia, etc.)  de Catão, Varrão, Columela e Paládio. Pela diferença de títulos, creio ser, não a esta, mas à obra de Columela que  H.G. Cancela foi buscar o título do romance.
 
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