25.2.13

Uma poesia diferente



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Madalena de Castro Campos (Lisboa, 1984), doravante MCC, estreia-se com o livro de poemas O Fardo do Homem Branco, editado recentemente pela Companhia das Ilhas. MCC foi buscar o título do livro a um poema [1], como é comum suceder. Porém, fez mais do que é vulgar, o último poema agarra o primeiro do livro pelo tema. Ambos são como dois pilares que, numa temática ramificada, marcam, o assunto central e único: o fardo do homem branco, ou seja, o peso da civilização ocidental de hoje, com a distribuição de poder, o uso dele e o modo. A unir esses dois poemas, há uma trave mestra, de onde derivam os poemas do interior, completando a montagem numa estrutura fechada, que só na aparência parecerá fácil, quando se me afigura difícil consegui-la com trinta e nove poemas relativamente curtos, de gestação não programática.

Para enquadrar a autora no que possa interessar à leitura de um primeiro livro, a badana esclarece: “Fez, sem muito empenho, uma licenciatura em filosofia, depois uma outra em arquitectura paisagista. Trabalha em Edimburgo, Escócia, na área do design de jardins. (…)”. Por outro lado, MCC afirma-se mais iconoclasta do que feminista. São dados que, de um modo bastante falível, podem ajudar a entrever algo neste livro que justifique a segurança a nível estético e o claro e hábil domínio da Língua. A confessada iconoclastia, por sua vez, conduz-nos para um subvertido ambiente conjugado sempre na terceira pessoa do singular, que funciona como um afastamento do ponto de vista, uma anulação eficaz do eu, deixando assim para o leitor a distanciação necessária para reflectir, como sucedia nas encenações de Brecht. 

A poesia de O Fardo do Homem Branco aborda, sobretudo, a condição da mulher na sociedade actual. Se alguém, por facilidade, arrume esta poesia como evolução da poesia de Maria Teresa Horta, escolhendo eu a mais mediática das poetisas feministas, logo se descobre que a poesia de MCC lhe é oposta. Aquela aspirava à emancipação da mulher, pela conquista dos seus direitos, ainda assim restritos, se tivermos em conta o panorama social, duramente condicionado pela política de periferia fascista do Estado Novo, miséria e monopólios, repressão até ao assassínio, alto clero conivente e hipocrisia moral. Sob a bandeira do feminismo, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, a poetisa acabou por travar uma luta política, e também de notoriedade, com a publicação, em 1972, de Novas Cartas Portuguesas. Dias depois de o livro sair, a edição é apreendida, o que catapultou o livro e o nome das três Marias para lá dos Pirenéus. À parte este sucesso histórico, a poesia de MCC,  assume, pelo contrário, uma revolta dura contra o poder nas relações da sociedade de hoje e opõe-se-lhe de modo singular entre nós. Não se afirma comummente feminista [2], não evidencia sinais disso, mesmo quando se serve de alguns arquétipos masculinos. É uma voz de mulher que fala deles, como nomeia intenções e denuncia comportamentos prepotentes e colonizadores com a nudez do corpo, do sexo e de actos sexuais frustres, veículos para contestar as relações na sociedade, expressas desde logo no sentido metafórico do título do livro.
[3]

Entre a publicação do primeiro livro de Maria Teresa Horta e o de MCC, há um fosso de mais de meio século. MCC vinca bem essa separação, quanto mais não fosse pela linguagem agressiva, áspera, enxuta, directa, sem complacência nem pudores, de períodos muitas vezes curtos, em versos talhados à guilhotina, isto é, exactos, quanto seja possível havê-los. Mas, além do fosso temporal, em O Fardo do Homem Branco não há comprazimento erótico-descritivo, tão-pouco  erotismo. Verifica-se é a sua total ausência, o que afasta de vez o livro como herança de qualquer exemplo nacional. Do mesmo modo, parece-me um excesso de taxonomia afirmar que parte dos poemas pertence à poesia obscena, um género bem determinado na literatura, cultivado entre nós desde a poesia trovadoresca [4], com carácter lúdico e não poucas vezes por chocarrice, escárnio e louvor próprio ou alheio. O que há é palavras a que poderemos chamar vulgarismos, para se salvaguardar que obsceno é o que elas contestam.

Subjaz, com isto, uma conexão entre todos os poemas de O Fardo do Homem Branco, a denúncia por vezes violenta da vida em tribo, que se manifesta ora por desdém e sarcasmo: “Ele elogiou-lhe a profundidade da escrita. / Não respondeu. Primeiro, / não se vendia por uns elogios. Segundo, / não sabia de que profundidade ele falava. / Se da sua cona, se da sua própria penetração. / Quanto a esta, / ela mantinha as dúvidas.[5]; ora por ironia ácida que me fez sorrir em Os Poetas (ler na imagem acima), ironia que também aparece em A Rapariga da Caixa. Desta vez, contudo, obrigou-me a meditar no parco destino das empregadas de supermercado, um poema bastante cénico, que tem algo do Teatro do Absurdo. Há também a denúncia da abjecção social em grau extremo, igualmente passível de uma cena daquele conceito de teatro, talvez o poema mais violento do livro: “Empurrou a porta das mulheres, / (…) sentou-se na sanita.  / (…) ajoelhou-se  junto do cesto do lixo. / Papel higiénico ainda húmido, pensos manchados, / tampões. Levava à boca e sugava. // Ninguém o viu sair.” [6]
 
Há outros temas, nomeadamente exemplos de submissão feminina, e um caso tipificado de mulher totalmente balizada pelos comportamentos da sociedade, isto é, alienada por ela, cujo poema transcrevo abaixo. Seria fastidioso continuar com a enumeração dos temas. Se o fiz, é porque estou longe de imaginar MCC como uma poetisa especializada. Nem que fosse só pelo poema que, finalmente, se segue, quanto mais pelo livro, como obra inteira:

"HUMANIDADE

Encontrou-o caído à porta de casa.
Passou-lhe por cima,
a caminho do carro.
À tarde, quando regressou, ele continuava lá,
a cabeça contra o terceiro degrau.
Tinha o sangue seco, os olhos abertos.
Contornou-o e fechou a porta.
Não ligou as luzes,
reduziu o som da televisão." [7]

A violência da denúncia e a secura atravessam o livro como um sofrimento oculto, e a possibilidade de uma palavra com um pouco de calor seria viável no contexto de só um poema [8]. Mas esse calor não surge, nunca surge. Também esta particularidade da poesia de MCC me remete mais uma vez para o Teatro, o que só tem a ver comigo mesmo, com o fundo cultural que me forma e não com qualquer influência. Refiro-me à lembrança que guardo das peças de Sarah Kane a que assisti, em que não se busca salvação, mas se relata e denuncia a perda dela. Tudo tem de ser assim, violento, por causa do fardo do homem branco e não como programa. É uma forma nova, escancarada de revolta e de acusação da sociedade, além de testemunho inequívoco do tempo que vivemos. 
 

Ocorreu-me nomear aqui quatro vezes assuntos de Teatro. Pergunto-me se este livro não poderia ser adaptado para encenação em palco. Penso que sim. Resultaria uma peça da qual imagino sairíamos emocionalmente do avesso. O Fardo do Homem Branco é uma estreia notável, além de exemplo único, quanto sei, entre a velha, a menos velha e a jovem poesia portuguesa.

Nuno Dempster


[1] Por sua vez o título tem origem no poema The White Man’s Burden de Ruyard Kipling, originalmente publicado em 1899 com o subtítulo The United States and the Philippine Islands.


[2] Um feminismo muitas vezes caracterizado pela segregação de género e manifestações de espectáculo, sem visão política que assegure não apenas os direitos das mulheres, mas os dos seres humanos sem distinção.

[3] Ruyard Kipling no poema acima faz a apologia do colonialismo americano a partir da Guerra Hispano-americana, em 1898, por ocupação de territórios do império espanhol nas Caraíbas e ilhas do Pacífico. Daqui pode inferir-se que a mulher é sucessivamente colonizada na poética de MCC, e não só, também na realidade.

[4] Bocage, Guerra Junqueiro e mais pontualmente Natália Correia foram depois os principais cultores portugueses do género.
[5] O Critério, p. 41.

[6] O Respigador, p.18

[7]  p. 37.


[8] Herança,p. 27.
 
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