18.12.13

Um texto fora do texto



       Para pouca sorte minha, às oito já se vê uma longa fila no passeio para o centro de emprego, gente de todo o género, nova e menos nova, branca, preta, homens e mulheres, abundam calças de ganga e roupa barata e de muito uso; contraditoriamente, sou o mais bem vestido, há quem me olhe com desdém, ouço a um homem atarracado é mais um com a mania de que ainda é engenheiro, aqui somos todos iguais, mas eu, não, não sou nem me sinto igual aos da fila que se alonga cada vez mais. Não tenho nada a ver com eles por razões opostas, ter sido empresário e ter dormido na rua, nunca eles tocaram tão alto nem tão baixo, a diferença é essa, irreconciliável como a indumentária que comprei, parece que venho para uma reunião de negócios, na verdade desconhecia o que era um centro de emprego e a vida desta gente que, afinal, nasce de um chão raso e extenso que nunca pisei. A minha qualidade de sem-abrigo é como seja aqui uma desvantagem, de algum modo a expiação de um erro inadmissível que pressentirão em mim, no qual prevalece o empresário que fui, basta olhar a roupa discordante que trago, aqueles homens e mulheres taciturnos e pardos no rosto e no vestir vêm de longe, carregam geração após geração essa marca que a vida trata de espalhar como uma nódoa cancerígena, ensombrecendo-lhes os olhos e deformando-lhes o corpo. Um doutor, como me chamava Mateus, não pode falhar, andou a estudar então para quê? Eles sabem para quê, para saírem do limbo em que todos vivem do nascimento à morte. Nos últimos cinquenta anos, um ou outro irmão foi estudar para uma universidade com a renúncia dos que ficaram, por isso não podem fracassar, é injusto para os que se viram preteridos, de modo que eu serei sempre, para eles, uma excrescência, um tumor na longa fila à procura de trabalho.

© Nuno Dempster
 
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