14.5.16

Entrevista dada a uma revista literária açoriana



1.No poema “Foz do Douro” escreve “(...) sinto que não tenho uma cidade/ a que pertença inteiro e possa/ dedicar-lhe palavras (...)”. Aonde pertence verdadeiramente?

Sinto que pertenço à Ilha de S. Miguel e à Foz do Douro. Se nasci em Ponta Delgada e a minha família pelo lado paterno é de S. Miguel, passei a maior parte da infância e metade da adolescência na Foz do Douro, onde a família de minha mãe morava. Aos quinze anos, fechada a casa de família, tomo o mesmo comboio de Manhã Submersa, estudo em Coimbra e Évora, faço o estágio do meu curso em Mirandela, parto para guerra colonial da Guiné. Quando volto aos vinte e cinco anos, não sabia de que terra era.

2.No mesmo poema, escreve também: “(...) a ilha onde nasci/ não é minha senão no sangue/ de capitães distantes/ que me pai garantia correr-me nas veias (...)”. Os seus ascendentes pelo lado paterno são da Ilha de S. Miguel, pelo menos desde a fundação de Vila Franca do Campo, no primeiro quartel do século XVI. Como é que se relaciona com os Açores?

De uma vez que fui a S. Miguel, senti uma coisa estranha e calorosa sob os pés. Era a terra onde nasci, afinal tinha uma pátria, digamos assim. Sou de Ponta Delgada. Também o era em casa de meus pais na Foz, onde S. Miguel era preponderante com a sua cultura, da comida aos costumes. Mas não brincava na Ilha, brincava na Foz do Douro, a Ilha estava longe, e nesse tempo ia-se em navios da Insulana ou dos Carregadores Açorianos. Não devia ser barata a viagem. O meu pai ia sozinho.

 3.Tem antepassados literários importantes. É neto de um poeta e intelectual açoriano, Armando Côrtes-Rodrigues (o “avô poeta” que refere sem nomear em “O Baralho de Tarot”). Tem memória de seu avô? Como é que relaciona com esse dado biográfico e familiar?

Acima do mais, o meu avô Côrtes-Rodrigues era a figura tutelar que pairava em nossa casa, na infância. Escrevia-lhe para a Ilha com desenhos que ele achava muito expressivos, e a minha folha ia na correspondência que meu pai trocava com o meu avô. Veio duas vezes ao continente e a minha casa. Tinha uns olhos muito vivos e doces. Quando se zangava, porém, ficavam redondos de tão abertos e eram temíveis. Nunca a literatura fez parte das nossas conversas e só mais tarde, depois da sua morte, vi quanto tinha perdido, mas a família era assim. Claro que, em tempo, não nos cansaríamos de trocar ideias sobre poesia e literatura em geral. É uma pena irremediável que guardo.

4.Em “Londres” como que encontra uma âncora: “(...) O sol é a minha pátria, mas também o é a bruma (...)”. No seu cartão do cidadão coabitam a luz e a sombra?

Não há luz que não projecte sombra, o importante é que a luz evite projectá-la, quero dizer, seja a luz que mande, quem diz luz, diz alegria, paz e o controlo disciplinado da sombra. Na gestação da poesia e no meu caso, o controlo não é eficaz, mas é-o na vida.


5.Numa nota final a “Dispersão – Poesia Reunida” diz que os seus poemas de juventude desapareceram e que voltou mais tarde à poesia (“houve um longo intervalo em que a poesia não me surgiu como imperativo de me situar em mim no mundo”). Durante anos não precisou de escrever?

Escrevi desde os dezassete anos até aos vinte e sete por necessidade, tal como hoje, e foi por um romance falhado e depois por não me fazer falta escrever que parei. Era então um período luminoso e a vida está muito primeiro do que a poesia, embora a poesia faça parte dela e seja uma óptima bússola, melhor e modernizando os meios, um óptimo GPS para nos situarmos no mundo.
  
6.Tem uma vocação de viajante, em especial para cidades estrangeiras  - Marraquexe, Madrid, Atenas e Londres (aliás, tem um livro chamado “Londres”). É em “Londres” que escreve (...) a minha pátria é a humanidade. Mesmo que dela descreia (...)”. É mesmo assim ou foi assim em Londres?

Era assim nesse tempo, uma ideia romântica. Hoje a humanidade nunca poderia ser a minha pátria, sei demais acerca dela, mas também sei que há uma minoria que vale a pena cultivar, os dignos, lúcidos e justos, e os que, não sendo lúcidos a respeito do seu próprio destino e condição, são dignos, justos e inocentes da sua falta de lucidez.
 
7.“K3” é um livro sobre a experiência da guerra no qual não cede à tentação de poetizar sobre o ambiente natural onde se moveu na Guiné (“iria por um rio/sem hipótese alguma de lirismo”).  Como conseguiu encontrar a coragem para escrever sobre um tema tão terrível? Fê-lo para redimir o facto de, como escreve, não haver “(...) poemas que celebrem/ soldados sob fogo nos túneis escavados (...)”?

Creio que não. Sempre senti necessidade de testemunhar esse tempo. O romance falhado era dessa minha experiência que tratava. Dois anos depois de voltar, nada da guerra estava digerido, era tudo muito próximo, além de que não tinha a maturidade nem a experiência necessárias para escrever um romance. Na verdade, não conheço nenhum poeta que tenha celebrado a guerra colonial, não estávamos no século XVI, não estávamos no tempo da celebração das Descobertas, estávamos nos seus antípodas, na queda do império, daí não poder escrever-se poesia celebrativa, pelo contrário, a única possível e honesta era a anti-épica.
 
8. Encontra-se numa boa parte da sua poesia uma vocação incisiva e cortante com alguns prosaísmos e referências a elementos quotidianos (marcas de automóveis, nomes de estações de rádio, nomes de processores de texto) a contra-balançarem um tom abertamente lírico. É no contraste entre o pequeno e o sublime que a literatura se pode encontrar com a natureza humana?

Não me parece que esse contraste nos conduza à amplidão da natureza humana, nem estou certo de que hoje exista o sublime de que se me afigura falar, pelo menos não o encontro. A natureza humana no seu todo é a matéria-prima da literatura, e tenho para mim serem outros os meios para melhor a encontrar. A qualidade literária, a meu ver, é o principal e parece-me que único, porque essa qualidade contém tudo o que forma as obras literárias, ou seja, a natureza humana segundo o tema e a visão do autor. Crime e Castigo nada tem de sublime e toca o fundo da natureza humana, de uma parte dela. A poesia mística de San Juan de la Cruz será sublime? Poderá sê-lo sob o ponto de vista de uma leitura por alguém com profunda religiosidade, mas objectivamente é uma manifestação (e um testemunho) da natureza humana que a qualidade tratou de validar.
 
9. Alguns dos seus poemas – mais curtos e com remates secos - remetem para alguma poesia britânica. Revê-se nesse parentesco?

Na minha primeira fase, até aos vinte e sete anos, escrevia poesia surrealizante. Na segunda fase, a actual, pensei que a poesia devia ser entendida, e, na retoma da escrita, poema pró-surrealista escrito foi só um e o primeiro. Até o Monte Igueldo, em San Sebastian, pairava sobre a praia de La Concha… Perdi o poema sem pena nenhuma. Quando muito, valeria, em exclusivo para mim, como curiosidade, em exclusivo porque nunca o daria para publicação.
Isto talvez ajude a compreender a concisão nos poemas de que fala. Foi  ao mesmo tempo uma reacção ao que eu escrevia e ao que ainda hoje maioritariamente se escreve, uma poesia com dívidas ao Surrealismo.
Quanto à poesia de língua inglesa, penso que não. Julgo que devo a concisão a Kaváfis (nem uma palavra a mais ou a menos), e o desejo de inteligibilidade, a Jorge de Sena. Mas isto é muito redutor. Recebem-se influências de todos os lados que nos agradem. Somos a soma do que lemos com o que vemos por nossos olhos.

10. Nota-se que tem um apego aos clássicos (Virgílio, Homero, Dante, Shakespeare)  mas não deixa de se relacionar, com maior ou menor perplexidade, com a tecnologia. Tem um livro intitulado “Uma Paisagem na Web”. Em “Londres” escreve: “(...) telemóveis discutem/ com telemóveis,/enquanto a humanidade,/ que esse fervilhar digital conduz,/repousa tranquila e dorme/nas salas da National Gallery/ou do British Museum (...)”. Como é que a sua raiz clássica convive com o ordenamento digital?

E Camões, acrescento agora. Porque são grandes e porque bem cedo descobri os gregos clássicos. E convivem com o tempo actual, porque tudo o que refere na pergunta faz parte da vida, não há contradição, há continuidade e o sentido e percepção global que isso permite. 


11. “Do Tempo”, incluído no livro “Na Luz Inclinada”, abre com o verso “Tudo se gasta”. É um poema sobre a deterioração de “estradas”, do “mar”, de “Deus” e sobre a solidão essencial à condição humana: “(...) seres curvados,/genéticos, sozinhos, caminhamos”. Tem uma concepção desalentada da existência ou acredita em pequenas possibilidades?

O tempo não vai de feição para ditirambos, reflectimos a sociedade e o seu estado de espírito, testemunhamos o nosso tempo. Mas acredito, sim, nas pequenas possibilidades, que não poucas vezes são grandes para nós, sendo de facto e objectivamente pequenas.

12. Nesse desgaste inclui-se o amor, muito presente na sua poesia. Pode dizer-se que o desgaste amoroso também é um dos seus temas?

Conheço pessoas que se amam para toda a vida, e o amor, numa etapa tão longa, tem as suas dificuldades, penso eu. 

13. Em “O Tempo Foge” o homem é apresentado como estando como que encurralado na sua relação com o divino: “(...) Quem vê Deus nas estrelas/ está doente./ Quem não o vê, vive sozinho/ no cada vez mais rápido/ fugir dos dias”, Estamos condenados a esses dois caminhos sem saída?

Aqueles que representam o primeiro verso transcrito têm sorte e um caminho com saída, embora o segundo verso os qualifique. Os dos restantes versos estão restritos ao seu caminho sem saída. Mas tanto estes como aqueles vivem com o que pensam e, quantas vezes, em paz.

14. Em “Acerca do Silêncio” afirma crer não em deuses mas em “árvores/como em deuses de faz de conta”. Encontrou na Natureza, constante  nos seus versos, uma reduto onde se pode reconciliar com a existência? 

É antes um reduto onde pode encontrar-se bem mais a paz do que a reconciliação. Digamos que é um mundo limpo em que entramos e saímos. A consciência tem o seu preço e não permite vivermos absortos.


15. Há também um sentimento de absurdo – de viver, de escrever - em muito dos seus poemas: “(...) O exílio só não é um estado ilógico/ porque o resto da vida o seria também,/e não temos coragem de dizer/que o comboio e o teclado/ não conduzem a parte alguma (...)”. E no poema “Incomunicáveis” tira à literatura uma ambição salvífica que muitas vezes julga ter: “(...) as palavras acendem,/ em lugar de esperança, curto circuitos breves e fatais”.  As palavras podem mesmo pouco?

As palavras podem muito, são o que nos forma a lucidez, em conjunto com a nossa experiência, bem como permitem a expressão e a comunicação em presença ou por leitura. No poema Incomunicáveis as palavras referem-se à solidão de não poder falar-se com pessoas desconhecidas na rua (endoideceu, diriam).

16. A sua poesia tem um humor muito próprio, atravessado de melancolia. Em versos breves consegue abrir um efeito cómico claro. Qual o papel do humor no seu trabalho?
 
Nunca pretendi fazer humor, mas isso sou eu a dizê-lo. O que está escrito, escrito fica e pode provar o contrário do que afirmo. Talvez queira referir-se ao humor inteligente que é a ironia. A ironia em poemas é um jogo que me agrada e em que por vezes entro.

17. O penúltimo poema de “Luz Inclinada” tem os seguinte versos: “Procura-se a alegria com urgência;/ que defronte a memória no silêncio”. Escreve para procurar as “vozes de crianças” e algo que, não se realizando, ao menos “finja ser possível”?

São os tais sonhos, o finja ser possível. Quanto a escrever-se com uma finalidade, escreve-se o que nos ocorre e segundo aspectos que nos atraiam. A poesia temática para livro já não dispõe dessa liberdade, escreve-se para um assunto, escreve-se sobre ele, ainda que possamos não nos afastar dos vectores que definem as nossas escolhas e pensamento poéticos.

18. Em “Claridade”, poema de “Elogias de Cronos”, escreve sobre a brevidade da vida – aquela que tendemos todos os dias a esquecer. Resta-nos tentar habitar o “paraíso a termo”?
 
Os paraísos a termo são refúgios breves, lugares para onde podemos fugir a espaços, mas não habitar neles, são recusas da realidade, o que é uma variante do que já se respondeu.

Entrevista conduzida por Nuno Costa Santos.

 
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