8.11.09

Escalpe, Amadeu Baptista



Antes do mais, não sei se não será necessário lembrar aos zeladores da moral pública e às "vestais do puro"(1) que sempre se escreveu poesia erótica, e não somente erótica, também obscena, que é a irmã daquela outra, vulgarmente tímida, quase casta e envergonhada como os dicionários, que nunca trazem a gíria dos órgãos com que fomos feitos e seguramente, depois, instrumentos de nosso prazer e dos próprios dicionaristas.

A propósito deste tema, não vou desfilar nomes de poetas, que tantos são, mas apenas citar o de Marcial,

"(…)Porém os meus livrinhos,
tal como às suas consortes os maridos,
não podem sem caralho dar prazer." (2)

e parte de um texto de Almada Negreiros que convém a este livro: ”Luxúria estimula as energias e desencadeia as forças. É preciso ser consciente na Luxúria. É preciso dispor da Luxúria como um ser inteligente e raffiné dispõe de si próprio e da sua vida; é preciso fazer da Luxúria uma obra de arte.” (3)

Para além disso, há toda uma tradição de poesia obscena portuguesa que reforça, como género poético contemporâneo, o assunto deste livro, conveniente ou pouco conveniente a adolescentes , segundo sejam. Sublinho, de novo e não apenas, o carácter obsceno de uma poesia franca, presente neste novo livro de Amadeu Baptista, composto por um só poema que, na sua vertente explícita, hardcore, se quisermos, não deixa porém de remeter para o Cântico dos Cânticos, não como modelo, nem sequer como influência, que não se sente, muito menos como modo de tratamento, mas como relato da condição humana comum de dois corpos que se consomem de paixão repetidamente num e noutro livro, com linguagens e tratamento diversos. Escalpe busca a exaustão evidente do corpo, não se sabe se de uma noite, se de uma cama, se de uma manhã ou de uma tarde, se de um amor, de que todos nascemos ou deveríamos ter nascido, para alegria de quem viemos.

Nesta cidade de exílio a que Amadeu Baptista calhou chegar, vindo do Porto como eu, e onde a polícia apreendeu o livro de banda desenhada a um ex-eventual editor meu - intitulava-se, ingénua ou talvez provocatoriamente, As Mulheres não Gostam de Foder –, o livro Escalpe, de Amadeu Baptista, não vingará às claras. Mas este assunto sempre se alimentou do gozo em segredo, sabemos lá nós de quantos modos, se o prazer e a satisfação do corpo é um dos motivos mais secretos e centrais da nossa alegria e dos pecados que o divino nos imputa, não sabendo ele, diz-se, das suas delícias.

No entanto, o poema único de que o livro se compõe remete também para uma humanidade lateral a esta, a humanidade dos sentimentos pensados poeticamente, que não é uso surgir em temas de luxúria licenciosa, passe este qualificativo que não me agrada, pelo preconceito que pode deixar perceber e que não tenho, prefiro qualificá-lo com o eufemismo do esvaimento de dois amantes, ou simplesmente com o redutor hardcore.

A este propósito, repare-se no desespero dos versos abaixo, além da força que se realça da contradição entre os dois contendores – que é isso que são, embora dois em um, são sempre dois. E atente-se, para quem goste destas coisas, na beleza formal das duas oposições, a do primeiro verso citado com o segundo, e a do terceiro com o quarto:

"Eu peco por luxúria
e tu pela redenção que vem dessa luxúria:
o ilícito instrumento,
o lícito penhor, que só por este amor nos salvaremos."

Seria bastante curto assentarmos superficialmente numa classificação do tema estrito do livro, quando se lêem descrições de grande beleza como esta:

"(…)Tu levantas o coração no meu
e o meu coração levanta‑se contigo."

Ou então admitirmos a verdade de que é um livro de poesia obscena, que, na sua humanidade, vai mais além do que as baias em que é uso colocar-se o assunto:

"Nos meus e nos teus rins se acumulam
segredos desusados, o real é um cúmulo de árvores e areais
desoladores,
visões devastadoras do silêncio"

Ora é aqui que reside, digamos, a marca registada do poeta, não fala só de cama e de secreções, fala da experiência que recolheu do mundo e que transvaza para a paixão amorosa, e é aí que podemos ver, por entre os adereços da descrição crua, a base da sua voz contra a dos outros, a dos tais zeladores e “vestais do puro”:

"Por mais que queiram,
não nos suportam a pureza da carne
e os seus ritos primordiais
e derradeiros."

Não só Deus, há também poetas que escrevem por linhas tortas, perdoe-se-me este adjectivo, aplicado apenas para se seguir melhor o aforismo. Ou seja: leia-se o livro não apenas naquilo que porventura todos sabemos, mas no que nos é revelado, ou por nos identificarmos com a experiência, ou por descobrirmos nela uma outra dimensão até aí desconhecida em nós.

Escalpe, Amadeu Baptista, &Etc, 2009

(1) Aviso de Porta de Livraria, Exorcismos, Jorge de Sena, Poesia III, Edições 70, 1989.
(2) Epigramas, Marcial, Edições 70, 2000.
(3) (Revista) Portugal Futurista, Almada Negreiros, Contexto, 1990.
 
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