26.10.09

Escrever com gozo e alegria: Hugo Milhanas Machado




Hugo Milhanas Machado (HMM) foi para mim uma revelação, quando li, no seu blogue, poemas admiráveis de alegria, tendo como cenário o Tour de France na montanha. Para outros de gosto diverso (não deveria ser este o qualificativo), infelizmente bem mais numerosos, lê-los poderá muito bem ser uma chatice, não sem previamente terem arrumado os poemas com um pensamento lapidar: não se escreve poesia sobre a Volta à França. O gosto das maiorias, mesmo muito minoritárias como é a dos leitores de poesia, enquanto maioria, nunca foi fiável, e não se chame a isto elitismo. Chame-se lucidez sobre a impreparação. Daí o fácil alinhamento pelo que é mais consensual: o que é moda e o que é considerado intocável pela generalidade. O rei nunca pode ir nu, mesmo que vá em pelote.

Dito isto, o que me faz escrever agora sobre o livro Entre o Malandro e o Trágico, de Hugo Milhanas Machado (n. Lisboa, 1984), editado este ano por Sombra do Amor, é o mesmo motivo que me fez contestar uma referência sem base de afirmação, acerca do poeta que HMM é desde os primeiros livros que dele conheço, Masquerade (Sombra do Amor, 2006) e Clave do Mundo (idem, 2007).

Entre o Malandro e o Trágico compõe-se de vinte e cinco poemas, escritos aos vinte e dois anos, que no pequeno preâmbulo o autor diz terem partilhado papéis com os últimos poemas escolhidos para Clave do Mundo. Julgo pouco mais terem partilhado do que esse espaço, ainda que na última parte desse livro, Cantata, nos poemas Bandoleiro e Fisherman’s Blues, se entreveja este livro, acrescentando eu que poderiam ter feito parte dele sem perda de unidade.

Lidos os livros acima, Entre o Malandro e o Trágico, que todos encomendei e paguei, é uma ruptura com a linguagem poética que neles maioritariamente encontrei, em que HMM dá a ler a sua poesia de iniciação. De um modo geral, abundam nela imagens, símbolos e metáforas, poder-se-ia dizer que HMM seria, entre tantos outros, mais um novíssimo, herdeiro do pequeno segundo modernismo que foi em Portugal o Surrealismo (e não a Presença como querem alguns) . Mas não. A ruptura guardou dos poemas dos livros anteriores, a nível da estrutura interior, as elipses e a repetição de palavras ou de frases no mesmo verso ou que passam para o verso seguinte, não como anáforas, mas, na minha leitura, como um modo diferente de realce: “Amanhece / que não vemos/ que não vemos/antes/ vínhamos andando/ pelas lagoinhas(…)” ou “(…)domingo à noite/ quando se querem/ coisas e tanto mundo/ sobram nomes/ é que sobram nomes.” , etc.

Esta ruptura tem uma qualidade bem mais complexa do que porventura poderá descobrir-se numa leitura ligeira. Para se poder falar com acerto, às vezes é preciso demorar-se e ser-se conhecedor de poesia de todos os tempos, e não apenas, digamos, da poesia do séc. XX e XXI, que é o mais que se vê, e ainda estar-se atento e de espírito aberto ao que nos chegue.

Digo isto, porque esta mesma ruptura tem um carácter culto, não de assuntos, não no sentido erudito, mas no do conhecimento técnico da Língua e também no conhecimento histórico da poesia. No entanto, HMM, leitor de Português numa universidade espanhola, não se coíbe de recorrer à impureza da Língua de hoje, cruzada de termos de gíria, meke, cool, em meke usando o k das SMS juvenis, com línguas estrangeiras, o Galego em primeiro lugar, o Castelhano, o Inglês (naquele cool, eventualmente no título de poema Oh, Promenade) e também a variante brasileira do Português, além de uma expressão do português antigo, no último verso do poema de abertura. Talvez HMM saiba de modo menos sobressaltado do que eu que “as línguas (…)/ se derretem/(…) na caca de outras.”(1) , que se transformam, violadas pelas mais fortes, e que a velocidade da luz instalada na informação multilingue, a par de circunstâncias políticas, lhes apressa derreterem-se e morrerem. A verdade é que, em poesia, não é incomum recorrer-se pontualmente a outras línguas, e não é isso que vai contribuir para corrupções puritanas do vernáculo, não sejamos tão castos que morramos virgens ou não façamos da poesia um lugar de proibições, tantas vezes está ela, e bem, longe da gramática. De resto, é fácil saber de onde surgem as contribuições de facto, da tal caca diária que nos entra pelos ouvidos e pelos olhos dentro.

Esta liberdade de HMM é um prazer que se sente, que HMM usufruiu e que nos transmite: “olha deica deica (2)/ que é de voltar/ quando chove do sul” ou, entre mais casos, no poema notável, que transcrevo na íntegra, onde surge o castelhano namorarte, com o clítico não separado.

Terna
destreza para namorarte
diz da onda
sobre as praias
aportadas a sul
a que vens?
a que vens?
Já faz frio
que a lua balalança
de teus braços


Mas temos também neste poema algo que é comum no livro: a busca de significação já não só por imagens da realidade, mas também por subversões da Língua, neste caso subversão morfológica, balalança. De facto a Lua balalança na ondas, todos já o vimos, o que torna a imagem muito mais expressiva e tanto que balança me parece curto e apagadamente vulgar.

As subversões sintácticas, elipses e cortes de sentido, esses então são comuns e só por si jogam um papel muito importante no dizer mais do que as palavras dizem, substituindo-se, com uma grande frescura, à-vontade e alegria, aos processos analógicos do passado, fatigados de tão repetidos.

Cool
o rapaz está atinado
medrou depressa
a pequena
e agora
oh que pena
vimos nós para a morte
se dizemos saúde
à mesa
se o azar até
na praia nos acena
ontem a exemplo
cool
apagaram a infância
somos da mesma narrativa
e ena a sobremesa.

Muito prazer deve ter dado a HMM este último verso, talvez escrito de repente, como parece ter sido. É como que um resgate da infância apagada, dois versos acima. Tanto do indizível comporta que me ponho a pensar para que serve a artilharia de tropos, presente ainda, como artilharia, em poesia vária de hoje.

Escrever com gozo e alegria afirmativa, sem sombra de futilidade, escrever para si mesmo em primeiríssimo e único lugar, é não só um acto de liberdade, como, no caso de HMM, de alguma alforria, não enjeitando o passado, usando mesmo, ó pecado fatal, a rima aleatória, às vezes bastante divertida como a do primeiro poema, Meia-Lua, uma monorrima irregular em ente, um pouco como na poesia árabe, daí talvez a toada peninsular que HMM refere na nota introdutória.

Enfim, este livro dava pano para mangas. Devo referir ainda a capa, propositada e irreverentemente anacrónica: contrasta não só com o apuro da edição, mas também e sobretudo com os poemas. Ilídio J. B. Vasco, autor da capa e da paginação, soube interpretar, pela contradição provocatória, a poesia tão de hoje de Hugo Milhanas Machado.

Notas
(1) de Noções de Linguística, de Jorge de Sena, Poesia III, Exorcismos.
(2) deica deica, expressão galega que pode traduzir-se por adeus adeus.
 
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