14.4.11

Linhas de Hartman, de Paulo Tavares


Linhas de Hartmann é o terceiro livro de poesia publicado de Paulo Tavares (Montelavar, Sintra, 1977), editado pela &etc em Fevereiro último e julgo que saído para as livrarias no passado mês de Março. Os dois livros anteriores de Paulo Tavares foram também comentados por mim aqui e aqui. A capa é da pintora Maria João Lopes Fernandes, com o designer e paginador Pedro Serpa nos néons do título e do nome do autor, segundo revelou, em sessão pública, a própria pintora, que gosta dos pontos nos ii. Disse mais, que Vitor Silva Tavares, editor da &etc, é que dirigiu o pequeno e excelente ensemble, porém isso é sempre prerrogativa e o papel de Vitor Silva Tavares, que desempenha com paixão, rigor e bom gosto.

O livro é um poema de poemas, digo-o porque os poemas se articulam entre si e no todo. Virem numerados talvez corresponda à intenção do poeta em os individualizar, sem perderem a ligação entre eles, antes aparentemente a consolidando, e digo aparentemente, porque a ligação estaria assegurada à mesma pelos próprios textos e sua disposição. Foi iniciado em Novembro de 2004, conforme nota do autor, útil para memória futura. Com a dificuldade que têm os poetas novos - e os velhos, porém mais os novos - em verem-se editados, a cronologia das publicações falseia não poucas vezes o período da génese dos poemas e dos livros, facto mais importante no período de crescimento que é a juventude. É o caso, não fosse a nota. O poema foi provavelmente acabado nesse mesmo ano ou no início do seguinte, pelo menos na sua ideia inspiradora. Das posteriores operações plásticas à estrutura e à forma, vulgo catar, corrigir, cortar, é que não se pode estar certo, de resto, afinal, como do seu término, embora me pareça legítima a transposição de experiências e me surja bastante improvável repartir a feitura original por anos poeticamente tão distantes num jovem, como quaisquer entre 2004 e 2010. Aliás, os poemas no poema comungam entre si dos diversos sinais que me parecem uni-los num só tempo. Em relação ao seu segundo livro publicado, Minimal Existencial (Artefacto, Maio de 2010), o ritmo, a luz, a cor, a tensão do espanto das descobertas, mesmo a violência das contradições e o próprio pathos, em que Linhas de Hartman é rico, contrastam vivamente com o discurso em geral pausado e reflexivo dos poemas de Minimal Existencial, de visão mais adulta, o que não significa no caso nem melhores nem piores, mas diferentes, sucedendo algumas vezes que as primeiras obras brilhem com uma luz juvenil que os torna únicos e irrepetíveis, como é o caso deste livro. Disse uma luz juvenil. Juvenil, sim, mas ditada por uma experiência dura. Além do mais, o primeiro livro a ser publicado, Pêndulo (pela extinta Quasi, em Outubro de 2007), cuja cronologia de escrita se situará entre Linhas de Hartmann e Minimal Existencial, está bastante mais próximo daquele do que deste, na identificação que faço dos sinais, como se fossem os círculos do crescimento anual das árvores. Por outro lado, em Linhas de Hartman, o autor não usa pontuação; em Pêndulo, umas vezes usa, outras, não; em Minimal Existencial, usa-a sempre. Há, segundo estes dados, com o tempo, um regresso paulatino à pontuação, que me confirma uma continuidade.

O título Linhas de Hartmann foi retirado do poema 10, p. 50:

“(…) quando as plataformas terminarem de oscilar
ficarão crianças órfãs brincando entre os destroços
e o perigo de novos impactos ficarão crianças presas
sobre as intersecções das Linhas de Hartmann

sem entenderem os processos de crescimento instituídos (…)”

Mas, como sempre, quando os títulos vão para além de uma significação mais fácil de apreender, isso é dizer pouco ou nada. As linhas de Hartmann, grosso modo, constituem uma rede condutora de energias térmica, electromagnética e de radiação cósmica já transformada pela crosta terrestre, e tem influência nos seres vivos, entre os quais é uso destacar-se os humanos, sobretudo nos cruzamentos das linhas, intersecções como se diz no poema. São mensuráveis, isto é, reais. E aqui o que importa ao título não é tanto a rede em si que as linhas formam, afinal toda ela de origem cósmica. As linhas de Hartmann não pertencem à ficção, são uma realidade física demonstrada, mas têm uma origem mais visível no Cosmos. Daí a aliarem-se, no poema, à ficção científica espacial é um salto, ambas estranhas e misturadas, ambas com intenção significante. É pois o interesse do autor pela ficção científica espacial que o vai servir como parte integrante da sua própria poesia, pág. 45:

        “(...)Que ser estranho
pensa quem me apanha distraído com as Crónicas
Marcianas ou A Educação Sentimental junto ao uniforme
(…)”

Demonstra, no próprio poema, que tanto lia Ray Bradbury como Flaubert, e obviamente muitos outros, repartidos entre os dois tipos de leitura.

E este género de ficção está presente com frequência, pelos seus assuntos, no poema, assumida como possibilidade quase mística e seguramente metafísica, p. 49:

“(…) o material magnético dos órgãos vitais
absorvendo o espaço profundo o número incerto
de aglomerados cósmicos numa estrutura
incalculável de dimensões é esmagadora
a sensação de infinito


ou como desastre na Terra, p. 48

“(…) as águas furiosas arrastam aleatoriamente
para o precipício do seu útero gerações inteiras
de vidas e obras por cumprir talvez a uma velocidade
de trezentos mil quilómetros por segundo (…)”

E em ambos os casos como criação de ambientes.

Articulado em duas partes, Meio Caminho e Fim de Década, Linhas de Hartmann desenvolve-se, no entanto, como uma sinfonia, seccionando eu a segunda parte em três, divisão que não só me surge clara, mas também útil à variação dos andamentos do poema. Se na primeira parte, Meio Caminho, a tensão parece sempre precipitar-se e assim se aguenta sem cansaço, no início da segunda parte essa tensão distende-se nos poemas 1, 2 e 3, até à p. 36, para aliviar de todo nos poemas 4, 5, 6 e 7 e p. 44, e a tensão subir de novo a níveis do início da mesma segunda parte. Finalmente repousa no último poema, o fecho. Perfeito. Este parece-me ser o grande desafio dos poemas muito longos, e vencê-lo, o seu melhor prémio.

Variando o meu ponto de vista neste levantamento, temos o poema como testemunho do nosso tempo e, nele, as circunstâncias de um jovem, que o sente com mais violência porque é jovem, e por isso mais sujeito às circunstâncias que o rodeiam. Escrevi sente, palavra tão perigosa e dúbia, referindo-me a um poema que não tem ponta nem de confessionalismo, nem de desbordamento sentimental. Mas serviu-me para apontar, sublinhando, a mão segura de Paulo Tavares.

Precedido de uma epígrafe que revela a posição ética do poeta no desconcerto do nosso tempo, o poema entra logo a matar, nem mais, não exagero. Transcrevo o poema 1, três versos. Mais um seria excesso, bom sinal para quem se dê a ver poesia, p. 9:

1

“[recuperar o fôlego
in medias res: louvado seja o banco no jardim
da cidade inclinada sobre o rio]

Este pequeno poema é uma introdução firme, e é evidente que corresponde a uma vontade do seu criador. A expressão louvado seja vai ser repetida mais duas vezes, mas no feminino, e , com ela, é repetida a mesma estrofe de 12 versos em dois poemas diferentes, pp. 18 e 26:

“[louvada seja a alucinante corrida:
o metro o comboio não chegar atrasado
a casa (…)]”

Tinha ficado com a ideia, na primeira leitura do livro, que esta expressão era repetida mais vezes, de tal modo ela me batia na cabeça. Explico: Louvada Seja, Áxion Estí em grego demótico no alfabeto latino, com tradução e prefácio de Manuel Resende, é um poema de ressurgimento nacional, de Odysséas Elytis, publicado em 1959 e editado em Portugal pela Assírio & Alvim 45 anos depois, em Março de 2004. É um poema belíssimo, obrigatório em qualquer estante de quem goste de poesia, um poema de paz, como escreve o tradutor no posfácio que também assina. A expressão louvada seja do título do poema grego é uma anáfora, repete-se, em caixa alta, no início e também pelo meio dos poemas da empolgante Glória, a parte final. Pois a entrada a matar é esta mesma: o achado de transpor a anáfora de Glória - que é uma acção de graças à vida e à Grécia natal de Elytis - para o meio da tensão contemporânea de uma Lisboa sem grandeza, que é toda a primeira parte de Linhas de Hartman. O autor induz assim, por antítese, uma sinergia tal na agitação da primeira parte de Linhas de Hartman que não recordo outro poema que use um meio parecido tão eficaz. Um achado? Sim, na medida em que andaria a ecoar na memória do poeta e que uma luz súbita viria a fixar. É o que penso, ainda que remotamente possa não ter sido essa a intenção do poeta. Contudo, tenho que entrar com o acolhimento entusiasmado dado ao livro de Elytis pelos leitores portugueses. O autor de Linhas de Hartmann muito dificilmente teria deixado passar tal facto, além da possibilidade de ter sido informado por recensões críticas sobre Louvada Seja, ou até já o ter lido antes, noutra língua, o que não foi o meu caso. A sete ou oito meses de iniciar o poema, a hipótese de não ter tomado conhecimento de tal livro torna-se assim muito remota.

Julgo que interesse ao leitor mais experimentado uma leitura próxima da génese do poema, longe da lotaria dos múltiplos significados, isto é, longe de um fulano ler branco e sicrano ler preto o que afinal é verde na sua origem e assim está no poema (quando está, mas isso é outro assunto, nos antípodas de Linhas de Hartmann). É certo que Paulo Tavares de facto poderia estar a louvar, mas porquê louvar uma alucinante corrida, ainda que a alguém pareça querer paz, que o sublinhado desmente nesta estrofe repetida na p. 26?

“(…) não adormecer muito tarde
acordar de madrugada ir à faculdade
aprender teorias essenciais sobre a arte
e sobre a vida compreender o porquê
de fazer todos os dias o mesmo trajecto


E como a encaixar nos dois poemas onde não cabe como bendição?

Linhas de Hartman é um poema da juventude de um poeta jovem, quero dizer, um poema de iniciação na descoberta do mundo pela poesia, no entanto com uma escrita firme e depurada que remete para uma aprendizagem prévia, e essa descoberta que gera a revolta e, muito mais, a revolta como ética e, no entanto, o quotidiano, a ladeira como imagem do esforço do trabalho, p. 33:

subindo a ladeira para o Instituto submerso
nesse mesmo impulso de antecipação
aos ponteiros do relógio atravessava o jardim
a avenida e entrava no edifício que tinha sido
um hospital militar no período das guerras coloniais
vestia a roupa justa e depois de dizer adeus
ao colega da portaria tomava conta da recepção


Ladeira quatro vezes chamada ao poema, sem contar quando o nome se ausenta e a subida permanece, enquanto no jardim atravessado, o banco, outra figura relevante da 1.ª parte do poema, agora de repouso a meio da subida, e no entanto:

meio caminho e o banco ocupado
a ladeira oblonga demasiado extensa
e quase o grito violento

        Acto lunático de um jovem sob pressão;
        Preocupantes indícios de uma geração à deriva(…)”

O poema vive muito destas tensões contraditórias, que não são mais do que parcelas da contradição central, que é o tempo em que vivemos e serve-se de uma linguagem de imagens e situações da realidade, e ainda da ficção científica e da Física por aparente proximidade daquela (a rede de Hartmann), linguagem poética que gera ambientes fortes e claros, de rápida absorção na leitura.

Mais uma vez me parece que fico a meio, muita coisa havia para pensar no poema e em que não pensei. Puxar trechos para aqui, desenvolvê-los. Por exemplo este, na abertura da segunda parte, p. 33

"Estávamos na primeira década do século 21
o mundo era redondo e achatado nos pólos
o Sol permanecia como astro central do sistema solar
e segundo recentes descobertas científicas os anéis
de Saturno emitiam melodias quando atingidos
por meteoritos talvez fosse esta a harmonia das esferas
de que os Antigos falavam
"

Fica um sentido de incompletude no que escrevi, mas também sinal de fascínio, comigo inteiramente dado a este poema de grande qualidade em todos os sentidos, entre os quais um que não referi, um poema vertical de alto a baixo, a lucidez e a ética transformadas em beleza, um poema inaugural na visão do mundo do poeta, editado como terceiro livro por contingências de publicação. Teimo nesta cronologia. Porque primeiros livros como este sucedem uma vez na vida, quando sucedem.
 
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