À data que escrevo esta nota de leitura, chegou-me pelo correio Estórias
Açorianas, de Carlos Alberto Machado, além do mais também editor da Companhiadas das Ilhas, as estórias editadas com mais cinco títulos, tudo de uma só vez. Entre esses
títulos está Passageiros Clandestinos, poemas de Fernando Machado Silva (Lisboa,
1979). Porque digo isto? Porque do autor li apenas Primeira Viagem, o seu livro de estreia, publicado em 2010 pela Orfeu,
Livraria Portuguesa e Galega, de Bruxelas, e a viva impressão que remanesce dessa
leitura aguçou-me a vontade para Passageiros
Clandestinos.
Primeira Viagem está dividido em
cinco partes, talvez pudessem ter sido quatro ou mesmo três partes, mas isso
não importa, quer pela poesia que encerram, quer por se tratar de um livro de
estreia.
Trata-se
de uma poesia marcada pela ironia, que por vezes roça o humor “Eu
tenho um problema / sou ligeiramente normal / vendo o mundo ligeiramente nos eixos / nem bem nem mal /
fora alguma miopia / gaguez e choros ocasionais”, pela observação do outro e
de si mesmo e também por um desencanto às vezes irónico: “enforcava os meus dias entrançando os cabelos / que foste largando nas
camisolas / que vestias casacos cachecóis", outras vezes sentido e comovente:
“e se eu estiver a mais / na tua vida já
tão cheia / de todas as memórias que me tens / contado e se eu estiver / a
menos no teu coração já / tantas vezes magoado / por outros que ainda te
habitam”. No entanto, a maior parte dos casos em que o desencanto surge, vem
escrito de uma forma tão isenta de excessos e de pena de si mesmo, tão alheio à
decadência como pose que nem parece ser desencanto:
“e
assim faço promessas
nas
longas noites insones.
o
que farei e o que não
farei.
explico-te a moral
desta
minha realidade distorcida
porque
é a única que conheço.
dia
após dia sei
que
me distancio de ti
sou
eu e isso fica
por
aí tal como
as
minhas palavras
sem
nunca te tocar
nem
tu querendo ser tocada
ou
movida ou procurares
sequer
encontrarmo-nos
a
meio caminho
um
do outro
e
mesmo propondo outros modos
nada
te demove do teu
pessoal
castelo de gelo
tirando
as vezes que te lembras
do
corpo finalmente adormecido
ocupando-te
a parte mais querida
da
cama.”
Os
dois grandes temas do livro são as hipotéticas relações amorosas do poeta e a
vida à volta delas, e a relação do poeta com o que o rodeia e consigo mesmo,
escritas com visível à-vontade e, pelos menos na aparência, com rapidez, por
vezes em poemas que ultrapassam uma página e mais, lidos sem cansaço. Vai-se
por ali abaixo, na dança dos versos, como me disse alguém quando me revelou a
dança que os poemas parecem ter e, na verdade, têm.
Trata-se
de uma linguagem poética sem subterfúgios, clara e directa, mas que gera volume
de significação para lá do que é escrito, os poemas são como histórias e relatos, e
essas histórias e relatos encerram a visão poética e esta alarga a semântica do discurso. Uma
mecânica simples e eficaz, com um tratamento tão distante, quer da monocromia chata que, não
poucas vezes, se nos depara, digamos assim, como poesia do real, quer, no outro extremo, igualmente
longe das sibilas que, por causa dos vapores de enxofre, não se percebe o que
dizem e talvez não digam mais do que os vapores aleatoriamente entregam à
adivinha conveniente dos basbaques.
O
livro precisaria de acertos aqui e além, a poesia não dá para pagar a revisores
de texto, mas os amigos existem também para os substituir e, eventualmente,
para fazer o que os revisores não fazem, sugerir alterações ao nível da eufonia
e do emprego do léxico. Se julgo isto indispensável, é certo que em Primeira Viagem não afecta a qualidade intrínseca
da poesia. Pudessem ler-se aqui os poemas que indico a seguir, melhor se
perceberia o que afirmo: OUTRA APRESENTAÇÃO, ALGUMA COISA HÁ-DE FICAR, RESPOSTA
ATRASADA A WALT WHITMAN, RESPOSTA A MEU MESTRE HAGAKURE, SE NOS GOSTAMOS PORQUE
DISCUTIMOS, QUANDO FOGES E FICO, DELICADOS DEMASIADO, DO SOLITÁRIO ARANHIÇO (…),
ALÇUDE, POEMA DO CORNUDO, UMA CONFISSÃO, A DOR É UMA PROPRIEDADE PRIVADA, ÉVORA
- SETE-RIOS, CASA DO ALENTEJO, ENCONTRO
DESTE LADO DO CINZEIRO NO GANDAIA, AVENIDA DOS SALESIANOS 1, SEGUNDA GUERRA DO
GOLFO NO BAIRRO DAS PITES, ESTUDOS E EXAMES, ODE A UM GATO MORTO, UMA PRIMEIRA
VIAGEM, UM PAI, PEQUENA ELEGIA DE UM ANO QUE PASSOU, UM REGRESSO INESPERADO, A
MANHÃ DE TODAS AS NOITES. Exactamente 50% do livro em títulos (em texto a
percentagem subiria) com uma cruz a lápis que pus para assinalar os poemas que especialmente me
agradavam, à medida que ia avançando na leitura do livro. Como não está nas
livrarias, pode encontrá-lo aqui.