5.6.12

Primeira Viagem, de Fernando Machado Silva

























À data que escrevo esta nota de leitura, chegou-me pelo correio Estórias Açorianas, de Carlos Alberto Machado, além do mais também editor da Companhiadas das Ilhas, as estórias editadas com mais cinco títulos, tudo de uma só vez. Entre esses títulos está Passageiros Clandestinos, poemas de Fernando Machado Silva (Lisboa, 1979). Porque digo isto? Porque do autor li apenas Primeira Viagem, o seu livro de estreia, publicado em 2010 pela Orfeu, Livraria Portuguesa e Galega, de Bruxelas, e a viva impressão que remanesce dessa leitura aguçou-me a vontade para Passageiros Clandestinos.

Primeira Viagem está dividido em cinco partes, talvez pudessem ter sido quatro ou mesmo três partes, mas isso não importa, quer pela poesia que encerram, quer por se tratar de um livro de estreia.

Trata-se de uma poesia marcada pela ironia, que por vezes roça o humor  “Eu tenho um problema / sou ligeiramente normal / vendo o mundo  ligeiramente nos eixos / nem bem nem mal / fora alguma miopia / gaguez e choros ocasionais”, pela observação do outro e de si mesmo e também por um desencanto às vezes irónico: “enforcava os meus dias entrançando os cabelos / que foste largando nas camisolas / que vestias casacos cachecóis", outras vezes sentido e comovente: “e se eu estiver a mais / na tua vida já tão cheia / de todas as memórias que me tens / contado e se eu estiver / a menos no teu coração já / tantas vezes magoado / por outros que ainda te habitam”. No entanto, a maior parte dos casos em que o desencanto surge, vem escrito de uma forma tão isenta de excessos e de pena de si mesmo, tão alheio à decadência como pose que nem parece ser desencanto:

e assim faço promessas
nas longas noites insones.
o que farei e o que não
farei. explico-te a moral
desta minha realidade distorcida
porque é a única que conheço.
dia após dia sei
que me distancio de ti
sou eu e isso fica
por aí tal como
as minhas palavras
sem nunca te tocar
nem tu querendo ser tocada
ou movida ou procurares
sequer encontrarmo-nos
a meio caminho
um do outro
e mesmo propondo outros modos
nada te demove do teu
pessoal castelo de gelo
tirando as vezes que te  lembras
do corpo finalmente adormecido
ocupando-te a parte mais querida
da cama.”

Os dois grandes temas do livro são as hipotéticas relações amorosas do poeta e a vida à volta delas, e a relação do poeta com o que o rodeia e consigo mesmo, escritas com visível à-vontade e, pelos menos na aparência, com rapidez, por vezes em poemas que ultrapassam uma página e mais, lidos sem cansaço. Vai-se por ali abaixo, na dança dos versos, como me disse alguém quando me revelou a dança que os poemas parecem ter e, na verdade, têm.

Trata-se de uma linguagem poética sem subterfúgios, clara e directa, mas que gera volume de significação para lá do que é escrito, os poemas são como histórias e relatos, e essas histórias e relatos encerram a visão poética  e esta alarga a semântica do discurso. Uma mecânica simples e eficaz, com um tratamento tão distante, quer da monocromia chata que, não poucas vezes, se nos depara, digamos assim, como poesia do real, quer, no outro extremo, igualmente longe das sibilas que, por causa dos vapores de enxofre, não se percebe o que dizem e talvez não digam mais do que os vapores aleatoriamente entregam à adivinha conveniente dos basbaques.

O livro precisaria de acertos aqui e além, a poesia não dá para pagar a revisores de texto, mas os amigos existem também para os substituir e, eventualmente, para fazer o que os revisores não fazem, sugerir alterações ao nível da eufonia e do emprego do léxico. Se julgo isto indispensável, é certo que em Primeira Viagem não afecta a qualidade intrínseca da poesia. Pudessem ler-se aqui os poemas que indico a seguir, melhor se perceberia o que afirmo: OUTRA APRESENTAÇÃO, ALGUMA COISA HÁ-DE FICAR, RESPOSTA ATRASADA A WALT WHITMAN, RESPOSTA A MEU MESTRE HAGAKURE, SE NOS GOSTAMOS PORQUE DISCUTIMOS, QUANDO FOGES E FICO, DELICADOS DEMASIADO, DO SOLITÁRIO ARANHIÇO (…), ALÇUDE, POEMA DO CORNUDO, UMA CONFISSÃO, A DOR É UMA PROPRIEDADE PRIVADA, ÉVORA -  SETE-RIOS, CASA DO ALENTEJO, ENCONTRO DESTE LADO DO CINZEIRO NO GANDAIA, AVENIDA DOS SALESIANOS 1, SEGUNDA GUERRA DO GOLFO NO BAIRRO DAS PITES, ESTUDOS E EXAMES, ODE A UM GATO MORTO, UMA PRIMEIRA VIAGEM, UM PAI, PEQUENA ELEGIA DE UM ANO QUE PASSOU, UM REGRESSO INESPERADO, A MANHÃ DE TODAS AS NOITES. Exactamente 50% do livro em títulos (em texto a percentagem subiria) com uma cruz a lápis que pus para assinalar os poemas que especialmente me agradavam, à medida que ia avançando na leitura do livro. Como não está nas livrarias, pode encontrá-lo aqui.
 
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