5.9.18

ENTREVISTA A CARLOS ALBERTO MACHADO A PROPÓSITO DO SEU RECENTE ROMANCE PUTA DE FILOSOFIA


Por Nuno Dempster


No passado mês de Abril, Carlos Alberto Machado fez publicar o seu novo romance Puta de Filosofia, em edição de Companhia das Ilhas. O livro está nas livrarias e na editora e, estou certo, um dos melhores prémios para o autor é ser bem lido, motivo desta entrevista e intenção de apoio à sua leitura.

A entrevista foi gizada antes de eu ter conhecimento de uma outra dada por Carlos Alberto Machado (CAM doravante) ao Observador. Curiosamente, dos assuntos aqui tratados, ainda que posteriormente acrescentados por influência da entrevista feita, só houve uma questão coincidente entre ambas, e por isso se eliminou, a saber, o motivo de o romance ter levado dez anos a ser escrito e publicado. Aliás, a pergunta diferia do espírito desta entrevista e, pela resposta de CAM àquele jornal, nada retirava ou acrescentava ao desiderato de sublinhar Puta de Filosofia como forma maior de literatura, multifacetada e livre.


ND  ̶ Para minha orientação e de quem nos leia, situo o seu Puta de Filosofia na literatura de carácter satírico, pela denúncia social e política presente como espinha dorsal do romance, pela crítica de comportamentos, pelo cunho jocoso de situações, pelo burlesco com que retrata personagens, pelo bom humor que respira. Sabemos que a sátira não se esgota em definições e que convive com outras formas de abordagem na mesma obra, literária ou não. Estou a lembrar-me da paródia que, em minha opinião, está presente no seu romance, na parte de «o nosso Primeiro», paródia que também surge associada à sátira em obras-primas como Dom Quixote de La Mancha ou, no Cinema, O Grande Ditador, ou ainda, em Pintura, O Jardim das Delícias Terrenas (painel de O Paraíso), para citar três exemplos largamente conhecidos. Gostaria de ter a sua opinião à luz do que afirmei.

CAM  ̶  Não sinto necessidade de incluir o meu Puta de Filosofia em qualquer tipo ou género de literatura, embora possa aceitar que o livro apresente um carácter satírico – mas tem outras marcas formais.

ND  ̶ Apesar de recorrer a ambiências próprias do romance policial, tendo em conta a minha pergunta anterior e sabendo nós o que buscam nesse género os seus numerosos leitores, não será um erro de paralaxe afirmar que Puta de Filosofia é um «policial»? Mais, não lhe parece bastante redutor?

CAM  ̶  O género policial, desde há umas décadas, deixou de estar preso aos cânones clássicos, e tem integrado ficções narrativas de muita diversa índole (tanto formais como de temas, etc.). Presumo, assim, que os leitores actuais não estejam presos a um estereótipo de género e que encarem o rótulo (que não é exclusivo) apenas como um estímulo ou desafio (até porque associado a “policial” está o “político”). 
            ND  ̶  Ou, como nos sucede mais do que uma vez, surpreendo-o com o resultado da minha leitura?

CAM  ̶ Não me surpreende. Se algum mérito o livro tem, é o de poder estimular muitas leituras diferenciadas.

ND  ̶ Pode ser sugestão minha, mas parece-me que emana de certo milieu uma ideia de menoridade da literatura de carácter satírico. Não é séria (bisonha e ensimesmada), não é pura e coisas assim. Que teria a dizer a esses putativos bem-pensantes, «vestais do puro» como Sena os qualifica num poema?

CAM  ̶ Não dou qualquer espaço na minha vida aos ditadores do gosto, seja a esse propósito ou a outro qualquer. Mas já que falamos disso: “humoristas” como o Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, são muito bem vistos e aceites por esses… puristas… Porque será? Trata-se apenas de uma questão mediática? Ou será por ser editado por certa editora? Ou por ser TêVêIsado? Ou por tudo isto juntinho?...

 ND  ̶ Tenho a ideia de que, em primeiríssimo lugar, se não único, se escreve para si mesmo, ficando o leitor à espera, sem se dar conta dele durante a criação. Foi com gozo que materializou o livro? Riu-se consigo mesmo em situações que ia criando? Teve a noção da originalidade satírica que percorre o livro e de que é um retrato muito português?

CAM  ̶ No meu caso, o processo de escrita deixa-se influenciar por um sem número de situações: e isto sem problemas, creio até que faço disso coisa positiva; portanto, o tal “leitor” também faz parte desse processo. Por vezes, depois de ter escrito partes de um livro, pergunto-me se o que fica dito abre espaço de compreensão para outros; ocasionalmente, reparo, por certas leituras, que não, que esse espaço ficou fechado, infelizmente – mas não altero o que escrevo por causa disso (em função de um “leitor” que é, no fundo, uma abstração). Este Puta de Filosofia foi escrito num período mais livre da minha vida, sem compromissos profissionais (eufemismo para desempregado). Talvez por isso, tive muito mais gozo em escrevê-lo do que outros (embora tenha sido no mesmo período que foram gerados outros escritos, uns que vieram já a lume, outros que estão para breve). Ri-me e rio-me – até de mim mesmo, pois não é essa uma característica da literatura satírica?

ND  ̶ Pela importância dos diálogos na evolução da trama e na definição das personagens, e pela sua qualidade per se, penso que não escreveria Puta de Filosofia, pelo menos com tanta vivacidade, se não fosse também dramaturgo com experiência cénica. Para além do enredo, será também por isso que Puta de Filosofia daria (e dá) um bom guião de filme, segundo afirmou ao Observador?

CAM  ̶ Sim, creio que a minha experiência no teatro (escrito e em palco) está muito presente, neste romance e em tudo o que escrevo. Quando disse que o romance poderia dar um bom guião de filme, tinha acabado de reler partes dele e essa sua característica foi então para mim mais evidente: pelos diálogos, pela definição das personagens (que se faz pelo que dizem e pelo fazem, e não pela “opinião” do autor), pelos planos e movimentos de câmara implícitos nas definições de “cenas”, pela ideia subjacente de editing (montagem), pelas sugestões visuais, etc.

ND  ̶ Se Puta de Filosofia não fosse o livro que é, haveria exageros, hipérboles em situações frequentes da narrativa. Concorda comigo quando penso que são traços voluntários, acentuados pelo carácter caricatural da obra, próprios da sátira e da paródia?

 CAM  ̶ Talvez… embora essa seja uma tendência minha (misturada com outras diametralmente opostas, e isso talvez seja uma das minhas “marcas autorais” – expressão que não me agrada muito mas que uso à falta de melhor).

ND  ̶ Este seu romance é muito rico em questões a pôr. Refiro-me a questões estéticas que, a meu ver, participaram, conscientemente ou não, no reforço desse carácter, pela criação de uma atmosfera pícara. Era isso que perseguia com o uso de palavras obscenas, digamos assim para não ferir ouvidos delicados?

CAM  ̶ É esse o meu universo linguístico-literário – e este romance tem também uma particular aderência ao real (embora por vezes pareça que não, que se trata de um universo paralelo…). A sujidade – verbal e outra – está muito presente em tudo o que fazemos, apenas lhe dei a visibilidade que me parece que deva ter.

ND  ̶ Ultrapassou de forma cabal o que me parece hoje ser moda em certa escrita, o uso, por dá cá aquela palha, de palabrotas, enfim, de carvalhadas, para usar o nosso vernáculo. Teve noção desse risco?

CAM  ̶ Leio pouca ficção actual, não sei o que se escreve com essa tonalidade, digamos assim. Sei que há quem goste disto e quem não goste, enfim. Mas, já agora, é curioso verificar (e eu tive essa experiência em diversas ocasiões), que até o “puta” do título é evitado pelas pessoas que querem falar do romance… Pois, parece que foi um risco (riso)!

ND  ̶  O que assistiu à ideia de pôr na pele de agentes da Judiciária a linguagem brejeira do submundo da «Grande Cidade»? E de os tornar personagens de sátira, a par dos seus chefes de serviço, de jornalistas de-faz-de-conta, de homens de mão, de um primeiro-ministro corrupto e mafioso, de uma preceptora suíça e até de duas crianças, Sandy e Dalila, numa passagem memorável que me fez rir sozinho, enfim, de gente que passa na galeria de retratos que é o seu romance?

CAM  ̶ A linguagem brejeira nos momentos Sandy é residual. Nos outros, é como lhe disse, estamos afundados na sujidade (política, etc.), e o escatológico literário pode ser uma maneira de reforçar esse traço societal. Não sou o primeiro a fazê-lo, como sabe; apenas espero que o tenha feito de certa forma original…

ND  ̶ E quanto ao uso de maiúscula em palavras e situações que, não as negando, as não exigem? A mim parece-me que é para conferir importância ao que não a tem, acentuando as contradições de que a sátira vive. Cito, por exemplo, Menino (Søren), Grande Cidade (a capital, onde decorre a acção), Rainha de um Rei preto, Guardiã, Garante, uma Catedral, Primeiro (primeiro-ministro. O caso que refiro de maiúscula é o nosso Primeiro, forma de tratamento militar dado a sargentos, entre eles os primeiros-sargentos, sem dúvida no romance um modo sarcástico de, repetidamente, nomear o primeiro-ministro), etc.. Estarei certo?

CAM  ̶ É sem dúvida uma forma de particularizar certas personagens, lugares e instituições. Mas também, por artifício puramente literário, atribuir-lhes um lugar acima do nosso quotidiano e, desse modo, ampliar-lhes o estatuto, dar-lhes relevo, etc. Não são quaisquer personagens, lugares e instituições nem o seu contexto é de vulgaridade, de banalidade.

ND  ̶  Calão urbano, palavrões, uso de maiúscula e agora nomes estrangeiros, muito maioritariamente dados a personagens principais, que são portuguesas, Søren Constantius, Sandy, Meyer, Jimenez, Angelica (sem acento é italiano) Mistral (francês de origem), Miguelito (comummente espanhol), Emmanuel (hebreu) Olivares (castelhano), se não me falha nenhum. Há ainda Meirelles, com dois eles, à antiga portuguesa, informador e pária social, como se quisesse ostentar ascendência nobre, com um efeito ainda mais vincado do que se fosse estrangeiro. Penso que esta estranheza de nomes contribui para a verosimilhança do enredo, que, aliás, não é questionável em todo o romance, por mirabolantes que sejam, numa leitura em abstracto, algumas situações. Esta opção, que é real, foi propositada ou pertenceu ao subconsciente que assiste na criação?

CAM  ̶ A opção da escolha dos nomes estrangeiros é absolutamente consciente (presente no meu O Mar de Ludovico, e nos romances que se seguirão, sobretudo no Hotel dos Inocentes). Neste caso, creio que acentua, bem, que existem aspectos, situações e pessoas que pertencem a outros universos geopolíticos, não apenas ao português. Por outro lado, ao afastar-se do universo doméstico, deixa mais liberdade de leitura do essencial, parece-me.

ND  ̶ As analepses da infância de Søren Constantius, a personagem central, Sandy de seu nome em criança, a meu ver dão volume à personagem, não ao tempo, simplesmente porque não é preciso alargá-lo, e como que permitem aumentar a base psicológica de Søren para tornar verosímil o fim da intriga, fim também aqui moral, à semelhança das considerações finais das sátiras clássicas. E essas analepses preparam a personagem adulta em volume, sem abandonar a ironia, a boa disposição e mesmo o carácter satírico, embora este com menos presença. Concorda comigo?

CAM  ̶ Eu diria que os tempos de Søren e de Sandy lhes dão espessura enquanto personagens mas também alargam mundivivências, ou deixam que certas mundivivências sejam partilhadas com o leitor, para lá da “intriga” (plot). Não creio que o final proponha uma “moral” de sátira clássica (o mundo fica muito longe de se reordenar); creio que se instala um vazio, nada é resolvido, nada é proposto como alternativa; a atitude de Søren é nihilista, talvez.

ND  ̶ Longe e imiscível, na minha opinião, fica pois Puta de Filosofia em relação aos policiais. Também não se põe a questão de o primeiro-ministro ser fulano ou sicrano. A corrupção pertence ao humano universal. É uma leitura imediatista e deformadora que não leva em consideração os arquétipos necessários à efabulação. Não lhe parece?

CAM  ̶ O primeiro-ministro pode ser fulano ou sicrano, mas também pode ser um universal: creio que é esta ambiguidade que enriquece a fábula. Se escapa aos arquétipos, pois, não há nada a fazer a não ser aceitar experimentar este caminho novo – e este poderá ser igualmente um desafio do meu Puta de Filosofia.

ND  ̶ Dadas as características do livro, entre as quais a crítica ao aparelho de Estado e a leitura bem-disposta, tem a noção de que Puta de Filosofia pode ser um honesto best seller?

CAM  ̶ Aqui, não. Comigo, não. Não pertenço (nem quero pertencer) a qualquer feudo, capelinha, lóbi, & afins, qualquer desses que dominam o meio editorial e de comunicação de massa (crítica literária incluída). Trata-se de uma contradição de termos: Carlos Alberto Machado e sucesso editorial (de massa, comunicacional, etc.). Não. E estamos bem assim.

ND – A pergunta anterior, ainda que não respondida segundo o intuito com que a fiz, teve a utilidade de revelar o seu modo de estar em Literatura, que é acima de tudo ético e lúcido. Constato que o termo best seller hoje se associa de tal modo ao debitar industrial de palavras que mesmo o qualificativo honesto, que antecipa o palavrão, não foi suficiente para traduzir a ideia da pergunta. Mas aproximemo-nos dela. Tem a noção de que Puta de Filosofia pode e deve ter, por qualidade e mérito, uma ampla recepção dos leitores, entre exigentes e menos exigentes?

CAM  ̶ Pois, pois é… mas logo que ouço o “palavrão” logo os sinos de alarme tocam a rebate. Um livro, este ou outro que mereça esse nome, deve ser conhecido, circular informação sobre ele, ter locais de exposição e uma comunidade interessada de leitores. E tudo isto pode ser mais ou menos alargado, é verdade. Mas o panorama do “mundo do livro” em Portugal é desolador. O espaço público está prisioneiro de grupos de interesse poderosos que falam do que querem e escondem o que os incomoda. O Helder Gomes Cancela (no ano passado, em entrevista à MJ Cantinho) disse isto que assino e sublinho: «(…) o espaço da crítica está tão rarefeito que em termos práticos é determinado pelas opções de um muito reduzido número de pessoas. É deles a responsabilidade por quem escolhem promover ou silenciar.» O silenciamento: o pior de tudo é o silêncio: não se discute o que não existe, o silêncio imposto é isto. Desolador. O Helder, no mesmo contexto, diz também: «Ninguém nos lê hoje, ninguém, provavelmente, nos lerá no futuro.» Best seller, o meu Puta de Filosofia? Mesmo «honesto», isto é, com «uma ampla recepção dos leitores, entre exigentes e menos exigentes»? Hum…

ND – Nuno Dempster.
CAM – Carlos Alberto Machado.
Puta de Filosofia, edição de Companhia das Ilhas, Abril de 2018.


 
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