Daniel
Francoy nasceu em 1979 em Ribeirão Preto, cidade do Estado de S. Paulo, onde
reside. Em 2010, trouxe à estampa o livro de poemas Em Cidade Estranha seguido de Retratos
de Mulheres, publicado pelas Edições Artefacto. Estas mulheres são jovens, traduzindo
garotas no Brasil, miúdas em Portugal, e formam um friso de frescura que tive a
sorte de ver formar-se. São poemas escritos em data bastante afastada da
publicação, maiormente escritos em 2002, com alguns, poucos, em 2003 e 2004. Na
mesma esteira e mais antigo, 20, um
poema surpreendente, escrito com 20 anos, é a base do olhar juvenil que informa
os retratos das raparigas. Por aqui poderíamos julgar enganosamente que são
poemas da juvenília, com o sentido algo depreciativo de coisas da mocidade que por vezes o nome ganha. Este aspecto, é
óbvio, não se repete no seu novo livro de poemas, Calendário, editado pela
mesma Artefacto no mês passado, tem o poeta trinta e cinco anos, mas esses
poemas da juventude chamaram-nos a atenção para o que poderia ser um livro novo
de Daniel Francoy. Apesar disso, a semente perdurável, como continuação,
encontra-se na primeira parte, Em Cidade
Estranha, do livro de estreia.
Que diferença então se nota em Calendário para o seu primeiro livro, o
que se lê e sente nele de diverso, que evolução teve o poeta? Uma evolução
profunda, com sensível perda da candura (mas não tanto de encantamento) e, de
modo total, da ténue e subliminar sentimento religioso que julgo aflorar num ou
noutro poema e com o ganho na firmeza dos versos, das palavras, das imagens que
já vêm do livro inaugural e se mantêm como ADN do poeta. Dir-se-á que os olhos
do autor se turvaram com o avanço dos anos e o afinar da consciência, mesmo
quando se refere a sentimentos como a ternura: “Carrego a ternura como um vaso de flores / trazido dos lugares da
infância / (a
terra apodrecida, as raízes mal cheirosas). / Digo a ternura com um hálito de
palavras mortas” [1]. O teor desta
intercalação e verso seguinte, bem como o seu tom são marca da poesia de Daniel
Francoy, algo impossível de não se reconhecer a autoria: “Saber escavar, escavar sempre / a terra podre e depois escavar / a
sombra espessa. Respirar fundo / a noite escura, a noite sem vento, /sem
vestígios argênteos do luar / (mesmo um luar imundo, encardido / de poeira e
fumo, não se percebe)/e sem murmúrio de mar diluído / nas negras artérias da madrugada.” [2]
Pode
inferir-se que o poeta aspira a algo que não existe, que é da insatisfação
resultante do seu embate com o mundo que nascem estas imagens turvas, criando,
significantes, o ambiente do poema e o que ele nos diz. Porém, mais do que
estas imagens simples, prevalecem as imagens fílmicas, como que encadeadas em
fotolitos, de que aquelas com frequência fazem parte, constituindo o guião em
que o poema se torna: “Tão baixo, possível, familiar, /o luar é apenas sujeira
no céu. / Ainda mais abaixo, há grilos, mosquitos, / morcegos, a água barrenta
/ de um riacho, a doçura/ dos frutos rachados pelos vermes /e também a aspereza/
em rostos que o tempo tratou / como pedra que nunca foi movida./ Não fui uma
ave migradora / e há rios que deixam de fluir /sem
encontrar algo maior.” [3]
Há também nesta linguagem o recurso sinérgico a oposições contraditórias, como
escrever que luar é sujidade, lixo, sem que isso nos fira a leitura, porque
aumenta a intensidade e se torna uma verdade violenta e inquestionável no poema.
E há mais exemplos nos poemas que citei acima, em parte ou no seu todo, sem ter
pensado ainda nesta particularidade potenciadora de tensão. A ternura que o
poeta carrega como um vaso de flores que
trouxe da infância contra a terra apodrecida, raízes mal cheirosas, o
hálito das palavras mortas; ou sem
vestígios argênteos de luar contra um
luar imundo, encardido de poeira e fumo; ou ainda a doçura dos frutos contra rachados
pelos vermes.
Seria bem pouco limitar a poesia a este aspecto, a este
efeito mais visível do tempo em que globalmente vivemos. Sem sair das imagens e
descrições fílmicas que é o seu modo de se expressar, Daniel Francoy clareia a
escuridade das imagens antes citadas e, vivendo nestes dias, discorre sobre o
seu quotidiano, a casa, a casa da avó, os gatos, o amor, o trabalho, a cidade
de Ribeirão Preto, com cerca de 666.000 habitantes, quando a cidade do Porto
tem perto de 238.000. Esta comparação demográfica serve para justificar a poesia
eminentemente urbana de Daniel Francoy, com poemas por vezes terríveis como este que a seguir se transcreve, em que não está presente o modo
expressão que referi, mas um outro igualmente forte que acaba por dominar no
livro:
A ventania vem como
um cão
atropelado que,
ganindo, coxeando,
afasta-se depressa.
Vira numa esquina
e o deserto do
tempo esvaziado
petrifica-se em
meus olhos.
Há uma faixa de
sangue coagulado
que se evapora no
céu desnudo,
abaixo as ruas sem
viva alma
que as percorra:
não há um único vulto
de gente, de
pássaro ou de árvore
que frature a
imobilidade calcinada
ao meio-dia rouco,
áspero,
refratário como uma pedra
de fogo.[4]
Que se recolhe do
poema? Uma extrema solidão urbana no meio-dia de um domingo, dia da semana que o
título do poema revela. Este nível de expressão, com imagens comuns do
quotidiano e suas sequências, envoltas na surpresa de serem tão novas e únicas,
este nível de liguagem, dizia, é maioritário no livro e confere aos poemas um
classicismo nobre e contemporâneo. Já ouço os epígonos que não se cansam de
macaquear o passado longínquo e os que finjem avantgards no presente – como se as houvesse –, com palavras
repetidas como tiques que não enxergam e repisam até ao bocejo mais escancarado,
uns e outros juntos em cliques e claques ferozmente inimigas. Daniel Francoy
escreve sozinho na cidade imensa e tem força hoje e mais terá amanhã para
escrever hinos à alegria como este:
Ainda são os dias
em que muito pouco
é ruína – ecoa um
sol imenso
na algazarra das
cigarras
e a noite de sábado
permite
que preparemos
coquetéis de verão
e ouçamos Cartola,
a sua voz
e o seu samba
triste pairando
por entre as
samambaias e no entanto
tudo são corpos que
ainda
se reconhecem nos
espelhos
da juventude e
acima de tudo o luar
com a sua oculta
voz marítima
rumorejando dentro
das artérias
desta alegria persistente. [5]
Um livro para quem goste de poesia
excelente, um livro que faz justiça ao poeta e que honra os editores e quem o
leia.
[1] - do poema Na Fronteira da Última Cidade, p. 35.
[2] - Saber Escavar, p. 28.
[3] - Dezembro, p. 25.
[4] - Domingo, p. 57.
[5] - Ainda São os Dias
em Que muito pouco É Ruína, p. 37.