1.No poema “Foz do Douro” escreve “(...) sinto
que não tenho uma cidade/ a que pertença inteiro e possa/ dedicar-lhe palavras
(...)”. Aonde pertence verdadeiramente?
Sinto que
pertenço à Ilha de S. Miguel e à Foz do Douro. Se nasci em Ponta Delgada e a
minha família pelo lado paterno é de S. Miguel, passei a maior parte da infância
e metade da adolescência na Foz do Douro, onde a família de minha mãe morava.
Aos quinze anos, fechada a casa de família, tomo o mesmo comboio de Manhã Submersa, estudo em Coimbra e
Évora, faço o estágio do meu curso em Mirandela, parto para guerra colonial da
Guiné. Quando volto aos vinte e cinco anos, não sabia de que terra era.
2.No mesmo poema, escreve também: “(...) a ilha
onde nasci/ não é minha senão no sangue/ de capitães distantes/ que me pai
garantia correr-me nas veias (...)”. Os seus ascendentes pelo lado paterno são da
Ilha de S. Miguel, pelo menos desde a fundação de Vila Franca do Campo, no
primeiro quartel do século XVI. Como é que se relaciona com os Açores?
De uma vez que fui a S. Miguel, senti uma coisa
estranha e calorosa sob os pés. Era a terra onde nasci, afinal tinha uma
pátria, digamos assim. Sou de Ponta Delgada. Também o era em casa de meus pais
na Foz, onde S. Miguel era preponderante com a sua cultura, da comida aos
costumes. Mas não brincava na Ilha, brincava na Foz do Douro, a Ilha estava
longe, e nesse tempo ia-se em navios da Insulana ou dos Carregadores Açorianos.
Não devia ser barata a viagem. O meu pai ia sozinho.
3.Tem antepassados literários importantes. É
neto de um poeta e intelectual açoriano, Armando Côrtes-Rodrigues (o “avô
poeta” que refere sem nomear em “O Baralho de Tarot”). Tem memória de seu avô?
Como é que relaciona com esse dado biográfico e familiar?
Acima do mais, o meu avô Côrtes-Rodrigues era a
figura tutelar que pairava em nossa casa, na infância. Escrevia-lhe para a Ilha
com desenhos que ele achava muito expressivos, e a minha folha ia na
correspondência que meu pai trocava com o meu avô. Veio duas vezes ao
continente e a minha casa. Tinha uns olhos muito vivos e doces. Quando se
zangava, porém, ficavam redondos de tão abertos e eram temíveis. Nunca a
literatura fez parte das nossas conversas e só mais tarde, depois da sua morte,
vi quanto tinha perdido, mas a família era assim. Claro que, em tempo, não nos
cansaríamos de trocar ideias sobre poesia e literatura em geral. É uma pena irremediável que guardo.
4.Em “Londres” como que encontra uma âncora:
“(...) O sol é a minha pátria, mas também o é a bruma (...)”. No seu cartão do
cidadão coabitam a luz e a sombra?
Não há luz que
não projecte sombra, o importante é que a luz evite projectá-la, quero dizer,
seja a luz que mande, quem diz luz, diz alegria, paz e o controlo disciplinado
da sombra. Na gestação da poesia e no meu caso, o controlo não é eficaz, mas
é-o na vida.
5.Numa nota final a “Dispersão – Poesia
Reunida” diz que os seus poemas de juventude desapareceram e que voltou mais
tarde à poesia (“houve um longo intervalo em que a poesia não me surgiu como
imperativo de me situar em mim no mundo”). Durante anos não precisou de escrever?
Escrevi desde os dezassete anos até aos vinte e
sete por necessidade, tal como hoje, e foi por um romance falhado e depois por
não me fazer falta escrever que parei. Era então um período luminoso e a vida
está muito primeiro do que a poesia, embora a poesia faça parte dela e seja uma
óptima bússola, melhor e modernizando os meios, um óptimo GPS para nos situarmos
no mundo.
6.Tem uma vocação de viajante, em especial para
cidades estrangeiras - Marraquexe,
Madrid, Atenas e Londres (aliás, tem um livro chamado “Londres”). É em
“Londres” que escreve (...) a minha pátria é a humanidade. Mesmo que dela
descreia (...)”. É mesmo assim ou foi assim em Londres?
Era assim nesse tempo, uma ideia romântica.
Hoje a humanidade nunca poderia ser a minha pátria, sei demais acerca dela, mas
também sei que há uma minoria que vale a pena cultivar, os dignos, lúcidos e
justos, e os que, não sendo lúcidos a respeito do seu próprio destino e
condição, são dignos, justos e inocentes da sua falta de lucidez.
7.“K3” é um livro sobre a experiência da guerra
no qual não cede à tentação de poetizar sobre o ambiente natural onde se moveu
na Guiné (“iria por um rio/sem hipótese alguma de lirismo”). Como conseguiu encontrar a coragem para
escrever sobre um tema tão terrível? Fê-lo para redimir o facto de, como
escreve, não haver “(...) poemas que celebrem/ soldados sob fogo nos túneis
escavados (...)”?
Creio que não. Sempre senti necessidade de
testemunhar esse tempo. O romance falhado era dessa minha experiência que tratava.
Dois anos depois de voltar, nada da guerra estava digerido, era tudo muito
próximo, além de que não tinha a maturidade nem a experiência necessárias para
escrever um romance. Na verdade, não conheço nenhum poeta que tenha celebrado a
guerra colonial, não estávamos no século XVI, não estávamos no tempo da
celebração das Descobertas, estávamos nos seus antípodas, na queda do império,
daí não poder escrever-se poesia celebrativa, pelo contrário, a única possível
e honesta era a anti-épica.
8. Encontra-se numa boa parte da sua poesia uma
vocação incisiva e cortante com alguns prosaísmos e referências a elementos
quotidianos (marcas de automóveis, nomes de estações de rádio, nomes de
processores de texto) a contra-balançarem um tom abertamente lírico. É no
contraste entre o pequeno e o sublime que a literatura se pode encontrar com a
natureza humana?
Não me parece que esse contraste nos conduza à
amplidão da natureza humana, nem estou certo de que hoje exista o sublime de
que se me afigura falar, pelo menos não o encontro. A natureza humana no seu
todo é a matéria-prima da literatura, e tenho para mim serem outros os meios
para melhor a encontrar. A qualidade literária, a meu ver, é o principal e
parece-me que único, porque essa qualidade contém tudo o que forma as obras
literárias, ou seja, a natureza humana segundo o tema e a visão do autor. Crime e Castigo nada tem de sublime e
toca o fundo da natureza humana, de uma parte dela. A poesia mística de San Juan
de la Cruz será sublime? Poderá sê-lo sob
o ponto de vista de uma leitura por alguém com profunda religiosidade, mas
objectivamente é uma manifestação (e um testemunho) da natureza humana que a
qualidade tratou de validar.
9. Alguns dos seus poemas – mais curtos e com
remates secos - remetem para alguma poesia britânica. Revê-se nesse parentesco?
Na minha primeira fase, até aos vinte e sete
anos, escrevia poesia surrealizante. Na segunda fase, a actual, pensei que a
poesia devia ser entendida, e, na retoma da escrita, poema pró-surrealista
escrito foi só um e o primeiro. Até o Monte Igueldo, em San Sebastian, pairava
sobre a praia de La Concha… Perdi o poema sem pena nenhuma. Quando muito,
valeria, em exclusivo para mim, como curiosidade, em exclusivo porque nunca o
daria para publicação.
Isto talvez ajude a compreender a concisão nos
poemas de que fala. Foi ao mesmo tempo
uma reacção ao que eu escrevia e ao que ainda hoje maioritariamente se escreve,
uma poesia com dívidas ao Surrealismo.
Quanto à poesia de língua inglesa, penso que não.
Julgo que devo a concisão a Kaváfis (nem uma palavra a mais ou a menos), e o
desejo de inteligibilidade, a Jorge de Sena. Mas isto é muito redutor. Recebem-se
influências de todos os lados que nos agradem. Somos a soma do que lemos com o
que vemos por nossos olhos.
10. Nota-se que tem um apego aos clássicos
(Virgílio, Homero, Dante, Shakespeare)
mas não deixa de se relacionar, com maior ou menor perplexidade, com a
tecnologia. Tem um livro intitulado “Uma Paisagem na Web”. Em “Londres”
escreve: “(...) telemóveis discutem/ com telemóveis,/enquanto a humanidade,/
que esse fervilhar digital conduz,/repousa tranquila e dorme/nas salas da
National Gallery/ou do British Museum (...)”. Como é que a sua raiz clássica
convive com o ordenamento digital?
E Camões, acrescento agora. Porque são grandes
e porque bem cedo descobri os gregos clássicos. E convivem com o tempo actual,
porque tudo o que refere na pergunta faz parte da vida, não há contradição, há
continuidade e o sentido e percepção global que isso permite.
11. “Do Tempo”, incluído no livro “Na Luz
Inclinada”, abre com o verso “Tudo se gasta”. É um poema sobre a deterioração
de “estradas”, do “mar”, de “Deus” e sobre a solidão essencial à condição
humana: “(...) seres curvados,/genéticos, sozinhos, caminhamos”. Tem uma
concepção desalentada da existência ou acredita em pequenas possibilidades?
O tempo não
vai de feição para ditirambos, reflectimos a sociedade e o seu estado de
espírito, testemunhamos o nosso tempo. Mas acredito, sim, nas pequenas
possibilidades, que não poucas vezes são grandes para nós, sendo de facto e
objectivamente pequenas.
12. Nesse desgaste
inclui-se o amor, muito presente na sua poesia. Pode dizer-se que o desgaste
amoroso também é um dos seus temas?
Conheço pessoas
que se amam para toda a vida, e o amor, numa etapa tão longa, tem as suas
dificuldades, penso eu.
13. Em “O Tempo Foge” o homem é apresentado
como estando como que encurralado na sua relação com o divino: “(...) Quem vê
Deus nas estrelas/ está doente./ Quem não o vê, vive sozinho/ no cada vez mais
rápido/ fugir dos dias”, Estamos condenados a esses dois caminhos sem saída?
Aqueles que
representam o primeiro verso transcrito têm sorte e um caminho com saída,
embora o segundo verso os qualifique. Os dos restantes versos estão restritos
ao seu caminho sem saída. Mas tanto estes como aqueles vivem com o que pensam
e, quantas vezes, em paz.
14. Em “Acerca do Silêncio” afirma crer não em
deuses mas em “árvores/como em deuses de faz de conta”. Encontrou na Natureza,
constante nos seus versos, uma reduto
onde se pode reconciliar com a existência?
É antes um
reduto onde pode encontrar-se bem mais a paz do que a reconciliação. Digamos
que é um mundo limpo em que entramos e saímos. A consciência tem o seu preço e
não permite vivermos absortos.
15. Há também um sentimento de absurdo – de
viver, de escrever - em muito dos seus poemas: “(...) O exílio só não é um
estado ilógico/ porque o resto da vida o seria também,/e não temos coragem de
dizer/que o comboio e o teclado/ não conduzem a parte alguma (...)”. E no poema
“Incomunicáveis” tira à literatura uma ambição salvífica que muitas vezes julga
ter: “(...) as palavras acendem,/ em lugar de esperança, curto circuitos breves
e fatais”. As palavras podem mesmo
pouco?
As palavras
podem muito, são o que nos forma a lucidez, em conjunto com a nossa experiência,
bem como permitem a expressão e a comunicação em presença ou por leitura. No
poema Incomunicáveis as palavras
referem-se à solidão de não poder falar-se com pessoas desconhecidas na rua (endoideceu,
diriam).
16. A sua poesia tem um humor muito próprio,
atravessado de melancolia. Em versos breves consegue abrir um efeito cómico
claro. Qual o papel do humor no seu trabalho?
Nunca pretendi
fazer humor, mas isso sou eu a dizê-lo. O que está escrito, escrito fica e pode
provar o contrário do que afirmo. Talvez queira referir-se ao humor inteligente
que é a ironia. A ironia em poemas é um jogo que me agrada e em que por vezes
entro.
17. O penúltimo poema de “Luz Inclinada” tem os
seguinte versos: “Procura-se a alegria com urgência;/ que defronte a memória no
silêncio”. Escreve para procurar as “vozes de crianças” e algo que, não se
realizando, ao menos “finja ser possível”?
São os tais
sonhos, o finja ser possível. Quanto
a escrever-se com uma finalidade, escreve-se o que nos ocorre e segundo
aspectos que nos atraiam. A poesia temática para livro já não dispõe dessa
liberdade, escreve-se para um assunto, escreve-se sobre ele, ainda que possamos
não nos afastar dos vectores que definem as nossas escolhas e pensamento
poéticos.
18. Em “Claridade”, poema de “Elogias de
Cronos”, escreve sobre a brevidade da vida – aquela que tendemos todos os dias
a esquecer. Resta-nos tentar habitar o “paraíso a termo”?
Os
paraísos a termo são refúgios breves, lugares para onde podemos fugir a espaços,
mas não habitar neles, são recusas da realidade, o que é uma variante do que já se
respondeu.
Entrevista conduzida por Nuno Costa Santos.