O modo do discurso narrativo em As
Pessoas do Drama (Relógio d’Água, 2017) é visivelmente mais denso do que nos
romances anteriores de H. G. Cancela, ultrapassando-os na complexidade das
personagens principais, o que obriga o autor a uma linguagem mais espessa do
que nas obras anteriores, capaz de traduzir o intrincado psicológico das personagens
principais e de lhes dar a vida virtual
que é a ficção literária.
Uma característica presente nos romances antecedentes de H. G. Cancela, bem
como, nos casos de igual importância, em As
Pessoas do Drama, é não revelar uma ou outra particularidade das
personagens principais, deixando para o leitor as perguntas sobre o que não
revela. Na generalidade, revelá-las não só nada acrescentaria à obra, como
satisfaria uma curiosidade comodamente inútil do leitor que o autor, a meu ver bem, terá julgado dispensável.
Ora isto passa-se em As Pessoas do Drama
também a nível muito mais importante para a narrativa do que as
simples omissões anteriores. Há uma indefinição da personagem do narrador que
nos vai conduzindo a imaginação, durante a leitura, a hipotéticas resoluções da
trama, em busca de chão firme. Não se sabe quem ele é, sabe-se que foi condenado a uma pena de prisão de vinte e três anos e que cumpriu quinze, mas desconhece-se que crime cometeu. Da sua pessoa e passado, durante a narração, não se conhece mais nada.
Chegámos a imputar-lhe, na nossa
imaginativa, uma paixão tocada pelo desequilíbrio mental, porque teima em ir
ver actuar, todas as noites, a actriz Laura Sperelli num teatro de Roma, interpretando Antígona, supõe-se
que de Sófocles, no entanto uma Antígona cega e, como a atriz, grávida de seis
meses que não existe em nenhuma obra de
arte. É um pormenor não só da liberdade criativa de H. G. Cancela, mas também
um meio de sublinhar com vigor a pessoa
e o drama de Laura em palco e fora dele, com algo do Teatro do Absurdo,
característica esta que se repete no texto em outras situações e noutros
romances do autor, testemunhando o sem sentido básico da vida das suas
personagens centrais.
Laura Spirelli acaba por aceitar
falar com o narrador, que não desiste de a ver todas as noites na sua
representação. Mas, nesse e nos sucessivos encontros a seguir, nada nos permite
inferir uma vontade amorosa em ambos e, muito menos, um desejo de sexo, nem
então nem depois, quando Laura vai viver com ele na herdade que este recebeu
por herança, não se sabe de quem. Aí não se descobre sequer um olhar de atracção ou de desavença entre eles. Não há nenhuma troca de palavras
sobre um assunto que, afinal, não se põe. Parece-me inevitável a pergunta de
quem lê: «Então, a que propósito ela está ali e ele o admite?» Podem aceitar-se
saídas várias, mas nenhuma definitiva. O homem enquanto espécie é capaz de tudo,
desde a grandeza à mais vil miséria do ser. O leitor, a cuja condição pertencemos, tende a
buscar uma solução de compromisso. Talvez baste ao narrador a presença de Laura
e depois do filho que lhe nasce e de quem ele cuida com frequência, apesar de o
pai da criança ser Filippo Arboreo, o encenador de Antigona com quem Laura é casada
e que depois abandona. No entanto, até final da narrativa, há algo que nos deixa a ideia de que a história não está bem
resolvida, o que encarámos com estranheza, conhecendo bem como
conhecemos a qualidade da obra de H. G. Cancela.
É no virar da página final, já fora do texto, que o livro explode e se
realiza como se fosse outro, chamando a si o segredo oculto da primeira à
ultima página, e alargando com essa revelação o hausto do que ficou escrito.
Não é um livro de fácil leitura, mas é uma grande surpresa, cujo meio de a
conseguir merece, pelo seu arrojo e inventiva, o nosso mais vivo aplauso, e não é apenas a descoberta
do meio em si que o merece, é também a
reconstrução mental do romance a que de imediato esse meio nos obriga,
mudando-o numa saga trágica. Nunca se me deparou caso de uma sinergia tão forte
que é capaz de pôr no seu sítio e a posteriori uma intriga afinal muito bem contada.
Nuno Dempster