Nova
Arte de Conceitos, Contos,
é o livro de estreia de Luís Miguel Rosa (n. Lisboa, 1984. Doravante LMR). Editou-o a
Companhia das Ilhas em Julho do corrente ano.
Esta é a segunda Nova Arte dos Conceitos na literatura portuguesa. O autor, porém, tinha conhecimento da primeira, do século XVIII, de Francisco Leitão Ferreira, que vem acrescentada de Lições no título, como informação ao leitor, tal qual a presente Nova Arte o faz com Contos. Não se trata de um desses acasos que sucedem por desconhecimento, falha de memória ou de vergonha, já que, em vez dos títulos das histórias, identifica cada narrativa no seu início por Lição, numerada em romano, confirmando-se assim a origem voluntária do título adoptado. Em contrapartida, logo na terceira página, o índice dá o título por nomes a cada um dos oito contos de que o volume se compõe.
Esta é a segunda Nova Arte dos Conceitos na literatura portuguesa. O autor, porém, tinha conhecimento da primeira, do século XVIII, de Francisco Leitão Ferreira, que vem acrescentada de Lições no título, como informação ao leitor, tal qual a presente Nova Arte o faz com Contos. Não se trata de um desses acasos que sucedem por desconhecimento, falha de memória ou de vergonha, já que, em vez dos títulos das histórias, identifica cada narrativa no seu início por Lição, numerada em romano, confirmando-se assim a origem voluntária do título adoptado. Em contrapartida, logo na terceira página, o índice dá o título por nomes a cada um dos oito contos de que o volume se compõe.
O livro abre com um soneto petrarquiano,
formalmente perfeito na métrica, na acentuação tónica e no esquema rimático, intitulado
Nota do Autor, em que LMR recusa energicamente, e bem, o Acordo Ortográfico de 1990. Seguem-se-lhe três
epígrafes, a mais importante das quais me parece ser a de João Palma-Ferreira,
que define as características do Cultismo, adoptado só na aparência pelo autor,
bem visível no primeiro conto, ou pelos leitores numa interpretação à letra.
Terá sido por isso que vi a obra classificada como barroca (a meu ver, nem sequer
ao neobarroco pós-moderno pertence). Por mim, tenho-a por crítica e denúncia
dos emaranhados literários como modo de tentar engordar a magreza de certa
ficção e poesia dos anos noventa até hoje. Para tal utiliza com frequência características que pertencem ao Barroco, mas apenas se serve delas como meio, não as assumindo. Seria absurdo se as assumisse quatro séculos depois. Para confirmação do que escrevo,
socorro-me da epígrafe que encima cada um dos oito contos, definindo
claramente o sentido dos textos respectivos.
Inicia-se assim uma
colectânea que é, toda ela, um jogo de ironia, por duas vezes absorvendo a própria narrativa. Micro-conto é uma delas, com uma
deliciosa explicação sobre o dito na página anterior ao texto, abaixo do título Lição II, explicação garantida pela
epígrafe respectiva de Francisco Rodrigues Lobo. A explicação e a epígrafe são
o que vale, pois não há micro-conto nenhum, apenas um diálogo ao acaso de duas linhas entre um casal, ele num português do Brasil de favela, ela em inglês, impresso
na página 53 como que por engano, sem qualquer ligação ao título, mas atado com
um nó cego à epígrafe respectiva. O outro conto, que também não o é, cuja narrativa
se absorve no jogo simultaneamente lúdico e irónico que percorre o livro, é Neologíase, neologismo que LMR pode ter
formado de neo + log(ia) + íase, que significaria
novo estudo sobre a condição mórbida. Condição mórbida de quê ou de
quem? Da Língua. Começa assim o que é a Lição
III: «Talvez nunca conheçamos a origem da praga.» Esta lição é verdadeiramente
abundante em neologismos, todos eles riscados, uns criados com ironia e gozo pessoal, outros
deixando a frase por acabar, em virtude da sua simples rejeição com um traço
por cima, sem olhar ao que se seguiria.
Socorrendo-me sempre da epígrafe de Francisco Rodrigues Lobo
para cada conto, como chave necessária para ler correctamente
os textos, distingo Lição I, Maqamat
al-Usbuna, passado no tempo do Al-Andaluz e da Reconquista Cristã, sob o ponto de vista moslém, como, imagino,
escreveria LMR com um sorriso, em vez de muçulmano, conto em que o Cultismo
surge de forma exacerbada e caricatural; Lição
IV, Abaporu (ou seja, antropófago,
em tupi-guarani), passado no Brasil do século XVIII, entre colonos,
aventureiros, homens de armas, negreiros, missionários, índios inadaptados à
escravatura e escravos africanos; Lagor,
Vogais, Tull decorre em Lisboa
deste nosso tempo. Um diálogo em linguagem vulgar, levada ao extremo de palavras e frases incompletas, entre
duas personagens que esperam pelos serviços mínimos do metro em tempo de greve;
Balanço A Meio do Século, solilóquio,
digamos assim, de um inquisidor do Tribunal do Santo Ofício, já retirado, no tempo imediato ao Terramoto de
Lisboa de 1755, em plena devastação da
cidade. Finalmente Lição VIII, Nereida,
recriação do episódio da Ilha dos Amores,
de Os Lusíadas, a que não falta a
ironia e uma prosa provocante, escrita com um acento antigo e inçada de rimas.
Deixou-se para trás Lição VI, Ó Tina,
que versa o caso de um poetastro, porque de certo modo seria repetir a Lição II, mas sem o relâmpago criativo que é esse não micro-conto. No entanto, pela sua absurdez e evidente
prazer do autor, não deixo de sublinhar, desse conto, Sextina Às Trevas, perfeita na forma e risível na monorrima, repetindo
sessenta e nove vezes o hiato ia, entre
rimas externas, que são trinta e nove, e internas, trinta, distribuídas por seis estrofes de seis decassílabos mais um terceto final, como é devido às sextinas, tudo cuidadosamente correcto, à semelhança dos quatro sonetos presentes nesta Nova Arte de Conceitos, formas clássicas que, exceptuando Nota do Autor na abertura, servem apenas a irrisão presente na Lição VI, Ó Tina.
Um livro culto, sem dúvida
diferente e trabalhoso de ter sido feito, que os amantes da Língua, e não só, devem ler sem
pressa, sublinhando, apontando, procurando, pois só se ganhará com isso. Poderá
ser por esse motivo que ao título de cada conto se junta outro, Lição. E se não o for para o autor, pode muito bem sê-lo para nós.
Nuno Dempster