Por Nuno Dempster
No passado mês de Abril, Carlos Alberto Machado fez publicar
o seu novo romance Puta de Filosofia,
em edição de Companhia das Ilhas. O livro está nas livrarias e na editora e, estou certo, um dos melhores
prémios para o autor é ser bem lido, motivo desta entrevista e intenção de
apoio à sua leitura.
A entrevista foi gizada antes de eu ter conhecimento de uma
outra dada por Carlos Alberto Machado (CAM doravante) ao Observador. Curiosamente,
dos assuntos aqui tratados, ainda que posteriormente acrescentados por
influência da entrevista feita, só houve uma questão coincidente entre ambas, e
por isso se eliminou, a saber, o motivo de o romance ter levado dez anos a ser
escrito e publicado. Aliás, a pergunta diferia do espírito desta entrevista e,
pela resposta de CAM àquele jornal, nada retirava ou acrescentava ao desiderato
de sublinhar Puta de Filosofia como
forma maior de literatura, multifacetada e livre.
ND ̶ Para minha orientação e de quem nos leia, situo o seu Puta de Filosofia na literatura de
carácter satírico, pela denúncia social e política presente como espinha dorsal
do romance, pela crítica de comportamentos, pelo cunho jocoso de situações,
pelo burlesco com que retrata personagens, pelo bom humor que respira. Sabemos
que a sátira não se esgota em definições e que convive com outras formas de
abordagem na mesma obra, literária ou não. Estou a lembrar-me da paródia que,
em minha opinião, está presente no seu romance, na parte de «o nosso Primeiro»,
paródia que também surge associada à sátira em obras-primas como Dom Quixote de La Mancha ou, no Cinema, O Grande Ditador, ou ainda, em Pintura, O Jardim das Delícias Terrenas (painel
de O Paraíso), para citar três
exemplos largamente conhecidos. Gostaria de ter a sua opinião à luz do que
afirmei.
CAM ̶ Não sinto
necessidade de incluir o meu Puta de
Filosofia em qualquer tipo ou género de literatura, embora possa aceitar
que o livro apresente um carácter satírico – mas tem outras marcas formais.
ND ̶ Apesar de recorrer a ambiências próprias do romance
policial, tendo em conta a minha pergunta anterior e sabendo nós o que buscam
nesse género os seus numerosos leitores, não será um erro de paralaxe afirmar
que Puta de Filosofia é um
«policial»? Mais, não lhe parece bastante redutor?
CAM ̶ O género policial,
desde há umas décadas, deixou de estar preso aos cânones clássicos, e tem
integrado ficções narrativas de muita diversa índole (tanto formais como de
temas, etc.). Presumo, assim, que os leitores actuais não estejam presos a um
estereótipo de género e que encarem o rótulo (que não é exclusivo) apenas como
um estímulo ou desafio (até porque associado a “policial” está o “político”).
ND ̶ Ou, como nos
sucede mais do que uma vez, surpreendo-o com o resultado da minha leitura?
CAM ̶ Não me surpreende. Se algum mérito o livro tem, é o de
poder estimular muitas leituras diferenciadas.
ND ̶ Pode ser sugestão minha, mas parece-me que emana de certo milieu uma ideia de menoridade da
literatura de carácter satírico. Não é séria
(bisonha e ensimesmada), não é pura e
coisas assim. Que teria a dizer a esses putativos bem-pensantes, «vestais do
puro» como Sena os qualifica num poema?
CAM ̶ Não dou qualquer espaço na minha vida aos ditadores do
gosto, seja a esse propósito ou a outro qualquer. Mas já que falamos disso:
“humoristas” como o Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, são muito bem vistos e
aceites por esses… puristas… Porque será? Trata-se apenas de uma questão
mediática? Ou será por ser editado por certa editora? Ou por ser TêVêIsado? Ou
por tudo isto juntinho?...
ND ̶
Tenho a ideia de que, em primeiríssimo lugar, se não único, se escreve para si
mesmo, ficando o leitor à espera, sem se dar conta dele durante a criação. Foi
com gozo que materializou o livro? Riu-se consigo mesmo em situações que ia
criando? Teve a noção da originalidade satírica que percorre o livro e de que é
um retrato muito português?
CAM ̶ No meu caso, o processo de escrita deixa-se influenciar por
um sem número de situações: e isto sem problemas, creio até que faço disso
coisa positiva; portanto, o tal “leitor” também faz parte desse processo. Por
vezes, depois de ter escrito partes de um livro, pergunto-me se o que fica dito
abre espaço de compreensão para outros; ocasionalmente, reparo, por certas
leituras, que não, que esse espaço ficou fechado, infelizmente – mas não altero
o que escrevo por causa disso (em função de um “leitor” que é, no fundo, uma
abstração). Este Puta de Filosofia
foi escrito num período mais livre da minha vida, sem compromissos
profissionais (eufemismo para desempregado). Talvez por isso, tive muito mais
gozo em escrevê-lo do que outros (embora tenha sido no mesmo período que foram
gerados outros escritos, uns que vieram já a lume, outros que estão para
breve). Ri-me e rio-me – até de mim mesmo, pois não é essa uma característica
da literatura satírica?
ND ̶ Pela importância dos diálogos na evolução da trama e na
definição das personagens, e pela sua qualidade per se, penso que não escreveria Puta de Filosofia, pelo menos com tanta vivacidade, se não fosse
também dramaturgo com experiência cénica. Para além do enredo, será também por
isso que Puta de Filosofia daria (e
dá) um bom guião de filme, segundo afirmou ao Observador?
CAM ̶ Sim, creio que a minha experiência no teatro (escrito e em
palco) está muito presente, neste romance e em tudo o que escrevo. Quando disse
que o romance poderia dar um bom guião de filme, tinha acabado de reler partes
dele e essa sua característica foi então para mim mais evidente: pelos
diálogos, pela definição das personagens (que se faz pelo que dizem e pelo
fazem, e não pela “opinião” do autor), pelos planos e movimentos de câmara
implícitos nas definições de “cenas”, pela ideia subjacente de editing (montagem), pelas sugestões
visuais, etc.
ND ̶ Se Puta de Filosofia
não fosse o livro que é, haveria exageros, hipérboles em situações frequentes
da narrativa. Concorda comigo quando penso que são traços voluntários,
acentuados pelo carácter caricatural da obra, próprios da sátira e da paródia?
CAM ̶ Talvez… embora essa seja uma tendência minha (misturada com
outras diametralmente opostas, e isso talvez seja uma das minhas “marcas
autorais” – expressão que não me agrada muito mas que uso à falta de melhor).
ND ̶ Este seu romance é muito rico em questões a pôr. Refiro-me
a questões estéticas que, a meu ver, participaram, conscientemente ou não, no
reforço desse carácter, pela criação de uma atmosfera pícara. Era isso que
perseguia com o uso de palavras obscenas, digamos assim para não ferir ouvidos delicados?
CAM ̶ É esse o meu universo linguístico-literário – e este
romance tem também uma particular aderência ao real (embora por vezes pareça
que não, que se trata de um universo paralelo…). A sujidade – verbal e outra –
está muito presente em tudo o que fazemos, apenas lhe dei a visibilidade que me
parece que deva ter.
ND ̶ Ultrapassou de forma cabal o que me parece hoje ser moda em
certa escrita, o uso, por dá cá aquela palha, de palabrotas, enfim, de carvalhadas, para usar o nosso vernáculo.
Teve noção desse risco?
CAM ̶ Leio pouca ficção actual, não sei o que se escreve com essa
tonalidade, digamos assim. Sei que há quem goste disto e quem não goste, enfim.
Mas, já agora, é curioso verificar (e eu tive essa experiência em diversas
ocasiões), que até o “puta” do título é evitado pelas pessoas que querem falar
do romance… Pois, parece que foi um risco (riso)!
ND ̶ O que assistiu à
ideia de pôr na pele de agentes da Judiciária a linguagem brejeira do submundo
da «Grande Cidade»? E de os tornar personagens de sátira, a par dos seus chefes
de serviço, de jornalistas de-faz-de-conta,
de homens de mão, de um primeiro-ministro corrupto e mafioso, de uma preceptora
suíça e até de duas crianças, Sandy e Dalila, numa passagem memorável que me
fez rir sozinho, enfim, de gente que passa na galeria de retratos que é o seu
romance?
CAM ̶ A linguagem brejeira nos momentos Sandy é residual. Nos
outros, é como lhe disse, estamos afundados na sujidade (política, etc.), e o
escatológico literário pode ser uma maneira de reforçar esse traço societal.
Não sou o primeiro a fazê-lo, como sabe; apenas espero que o tenha feito de
certa forma original…
ND ̶ E quanto ao uso de maiúscula em palavras e situações que,
não as negando, as não exigem? A mim parece-me que é para conferir importância
ao que não a tem, acentuando as contradições de que a sátira vive. Cito, por
exemplo, Menino (Søren), Grande Cidade (a capital, onde decorre a
acção), Rainha de um Rei preto, Guardiã, Garante, uma Catedral,
Primeiro (primeiro-ministro. O caso que refiro de maiúscula é o nosso Primeiro, forma de tratamento
militar dado a sargentos, entre eles os primeiros-sargentos, sem dúvida no
romance um modo sarcástico de, repetidamente, nomear o primeiro-ministro),
etc.. Estarei certo?
CAM ̶ É sem dúvida uma forma de particularizar certas
personagens, lugares e instituições. Mas também, por artifício puramente
literário, atribuir-lhes um lugar acima do nosso quotidiano e, desse modo,
ampliar-lhes o estatuto, dar-lhes relevo, etc. Não são quaisquer personagens,
lugares e instituições nem o seu contexto é de vulgaridade, de banalidade.
ND ̶ Calão urbano,
palavrões, uso de maiúscula e agora nomes estrangeiros, muito maioritariamente
dados a personagens principais, que são portuguesas, Søren Constantius, Sandy,
Meyer, Jimenez, Angelica (sem acento é italiano) Mistral (francês de origem),
Miguelito (comummente espanhol), Emmanuel (hebreu) Olivares (castelhano), se
não me falha nenhum. Há ainda Meirelles, com dois eles, à antiga portuguesa,
informador e pária social, como se quisesse ostentar ascendência nobre, com um
efeito ainda mais vincado do que se fosse estrangeiro. Penso que esta
estranheza de nomes contribui para a verosimilhança do enredo, que, aliás, não
é questionável em todo o romance, por mirabolantes que sejam, numa leitura em
abstracto, algumas situações. Esta opção, que é real, foi propositada ou
pertenceu ao subconsciente que assiste na criação?
CAM ̶ A opção da escolha dos nomes estrangeiros é absolutamente
consciente (presente no meu O Mar de
Ludovico, e nos romances que se seguirão, sobretudo no Hotel dos Inocentes). Neste caso, creio que acentua, bem, que
existem aspectos, situações e pessoas que pertencem a outros universos
geopolíticos, não apenas ao português. Por outro lado, ao afastar-se do
universo doméstico, deixa mais liberdade de leitura do essencial, parece-me.
ND ̶ As analepses da infância de Søren Constantius, a personagem
central, Sandy de seu nome em criança, a meu ver dão volume à personagem, não
ao tempo, simplesmente porque não é preciso alargá-lo, e como que permitem
aumentar a base psicológica de Søren para tornar verosímil o fim da intriga,
fim também aqui moral, à semelhança das considerações finais das sátiras
clássicas. E essas analepses preparam a personagem adulta em volume, sem
abandonar a ironia, a boa disposição e mesmo o carácter satírico, embora este
com menos presença. Concorda comigo?
CAM ̶ Eu diria que os tempos de Søren e de Sandy lhes dão
espessura enquanto personagens mas também alargam mundivivências, ou deixam que
certas mundivivências sejam partilhadas com o leitor, para lá da “intriga” (plot). Não creio que o final proponha
uma “moral” de sátira clássica (o mundo fica muito longe de se reordenar);
creio que se instala um vazio, nada é resolvido, nada é proposto como
alternativa; a atitude de Søren é nihilista, talvez.
ND ̶ Longe e imiscível, na minha opinião, fica pois Puta de Filosofia em relação aos
policiais. Também não se põe a questão de o primeiro-ministro ser fulano ou
sicrano. A corrupção pertence ao humano universal. É uma leitura imediatista e
deformadora que não leva em consideração os arquétipos necessários à
efabulação. Não lhe parece?
CAM ̶ O primeiro-ministro pode ser fulano ou sicrano, mas também
pode ser um universal: creio que é esta ambiguidade que enriquece a fábula. Se
escapa aos arquétipos, pois, não há nada a fazer a não ser aceitar experimentar
este caminho novo – e este poderá ser igualmente um desafio do meu Puta de Filosofia.
ND ̶ Dadas as características do livro, entre as
quais a crítica ao aparelho de Estado e a leitura bem-disposta, tem a noção de
que Puta de Filosofia pode ser um
honesto best seller?
CAM ̶ Aqui, não. Comigo, não. Não pertenço (nem quero pertencer)
a qualquer feudo, capelinha, lóbi, & afins, qualquer desses que dominam o
meio editorial e de comunicação de massa (crítica literária incluída). Trata-se
de uma contradição de termos: Carlos Alberto Machado e sucesso editorial (de
massa, comunicacional, etc.). Não. E estamos bem assim.
ND – A pergunta anterior, ainda que não respondida segundo o
intuito com que a fiz, teve a utilidade de revelar o seu modo de estar em
Literatura, que é acima de tudo ético e lúcido. Constato que o termo best seller hoje se associa de tal modo
ao debitar industrial de palavras que mesmo o qualificativo honesto, que antecipa o palavrão, não foi
suficiente para traduzir a ideia da pergunta. Mas aproximemo-nos dela. Tem a
noção de que Puta de Filosofia pode e
deve ter, por qualidade e mérito, uma ampla recepção dos leitores, entre
exigentes e menos exigentes?
CAM ̶ Pois, pois é… mas logo que ouço o “palavrão” logo os sinos
de alarme tocam a rebate. Um livro, este ou outro que mereça esse nome, deve
ser conhecido, circular informação sobre ele, ter locais de exposição e uma
comunidade interessada de leitores. E tudo isto pode ser mais ou menos alargado,
é verdade. Mas o panorama do “mundo do livro” em Portugal é desolador. O espaço
público está prisioneiro de grupos de interesse poderosos que falam do que querem
e escondem o que os incomoda. O Helder Gomes Cancela (no ano passado, em
entrevista à MJ Cantinho) disse isto que assino e sublinho: «(…) o espaço da
crítica está tão rarefeito que em termos práticos é determinado pelas opções de
um muito reduzido número de pessoas. É deles a responsabilidade por quem
escolhem promover ou silenciar.» O silenciamento: o pior de tudo é o silêncio:
não se discute o que não existe, o silêncio imposto é isto. Desolador. O
Helder, no mesmo contexto, diz também: «Ninguém nos lê hoje, ninguém,
provavelmente, nos lerá no futuro.» Best seller, o meu Puta de
Filosofia? Mesmo «honesto», isto é, com «uma ampla recepção dos leitores,
entre exigentes e menos exigentes»? Hum…
ND – Nuno Dempster.
CAM – Carlos Alberto Machado.
Puta de Filosofia, edição de Companhia das Ilhas, Abril de 2018.