27.3.21

O Mapa do Mundo, um livro de surpresas, de Pedro Eiras

O Mapa do Mundo, o mais recente livro de Pedro Eiras, é uma obra que põe a pensar os leitores que, como eu, arrumam os seus livros de literatura segundo o género. E, no fim da leitura deste livro, coloca-se-nos o problema de o arrumar no lugar justo. Porque interpretar Pedro Eiras pode originar e origina opiniões básicas desencontradas. Nem que seja apenas pelos seus dois últimos livros publicados, um quase a seguir ao outro, este a que venho, e Inferno, de poesia. Segundo o autor, numa entrevista dada na livraria Flâneur, a escrita de O Mapa do Mundo é anterior à de Inferno. No entanto ou por isso mesmo, a linguagem dos poemas de Inferno encontra-se já na prosa de O Mapa do Mundo, como se este fosse de alargados versos, um texto de poesia em prosa. Parece estar-se também diante de uma peça dramática, género cultivado por Pedro Eiras. As personagens no texto não saem fisicamente do limitado espaço cénico, senão pela palavra. É a partir dela que o espaço exterior se cria. É um diálogo entre O Pai e O Filho, dividido em cinco livros, dois de cada um e outro de O Touro, e cada fala deles é um capítulo à semelhança dos romances e, todavia, a identificação da personagem que intervém surge inscrita no início de cada fala / capítulo, remetendo assim a obra para um texto de teatro: O Pai, O Filho e depois O Touro.

 Até que ponto O Touro, negro, que O Filho nomeia e que me sugere o Minotauro de cor oposta, é também ele uma personagem? Não é nem tem porque o ser. É uma bela e muito densa metáfora. Na sua entrada como terceira hipotética personagem, no Livro III, O Touro, nada há escrito. Há uma página negra em branco, não mais, o que me colheu com surpresa e agrado, bem assim parte do desenho da planta de uma cidade, como que colado duas vezes entre o texto das falas / capítulos de O Pai, arquitecto, que está a traçá-la, e ainda o desenho a tinta de um bailarino num passo de dança, que aparece também duas vezes nas intervenções de O Filho, mas na segunda vez virado de cabeça para baixo, sugerindo um mergulho. Também estes desenhos no meio do texto me surpreenderam e, sem dúvida, enriquecem e ajudam a destacar, a individualizar ainda mais o livro. Nas páginas, como no palco, aparecem outras artes e meios em apoio da encenação contemporânea. É outro dado para quem gosta de analisar o que lê. Posto isto, O Touro é uma figura poética, notavelmente trágica e de grande intensidade, e, pela fala de O Filho, logo se sabe ser uma ameaça presente. A morte? Julgo que seja a morte enquanto sujeito poético e depois a morte física de O Filho, quando ele se põe literalmente dentro da pele do touro e, antes, o bailarino mergulha e ele se suicida. Não interessa tanto o que seja quanto o que parece durante a leitura. Só quando, acabada a leitura, se digere o livro é que a morte aparece em toda a extensão e não apenas quando se aproxima o final.

 Permita-se-me afirmar que O Mapa do Mundo ou se lê como um hermeneuta ou como um leitor de poesia, e os leitores, falo por mim, gostam pouco de abrir sentidos a maço e cinzel, aliás esforço inglório, porque o livro se perderia. Temos pois que o discurso é poético, que a trama é de uma tragédia, O Pai, o suicídio de O Filho, a convocação da mãe falecida, um dos mais altos pontos catárticos, O Touro que nos faz recuar para as tragédias gregas, um livro que tem de ser absorvido todo ele como texto poético, mesmo quando, por necessidade de ligação ou de acção, ou por mera opção criativa, nomeadamente a fuga a regras, se usa a prosa, no caso narrativa. E esta forma, a prosa, é controlada no seu ritmo por parágrafos abundantes e breves, de uma ou duas linhas, com frequência separados por dois toques do enter, parágrafos de períodos curtos e curtíssimos, pela sucessão rápida de frases, quando não por uma ou duas palavras apenas e supressões súbitas, o que a aproxima dos ritmos da poesia. Também se percebe, tal como em poemas, trechos que terão sido escritos velozmente, com urgência, bem como o seu contrário, e mais e o mais importante, a par da capacidade criativa do autor, a linguagem poética, que, fazendo parte dessa capacidade, foge de todo aos herdeiros tardios da escrita automática, com o seu léxico comum de metáforas, que podem misturar-se num copo de póquer e deitar-se sobre o papel, mas esta é uma linguagem honesta, tantas vezes surpreendente, a de Pedro Eiras, que se apreende por sensibilidade, ela mesma significante, formando significados sensíveis, um pensamento, uma ideia que, com frequência, não se percebem à letra, mas que possibilitam ser captados por sugestão. Uma escrita dramática? Também. Melhor, tão poética quanto dramática. Que livro? Talvez esteja mais próximo de uma tragédia; talvez Pedro Eiras o tenha pensado como um monólogo, todo ele, através da fala de O Pai. Como seria ou será levado à cena o texto? Com duas personagens, só com uma, O Pai? Com o touro de Guernica projectado no fundo da cena? Quem sabe não possa ser também uma narrativa para um leitor menos dado a análise? E porque afirmam que Inferno é o primeiro livro de poesia de Pedro Eiras? se há mais de dez anos no-la deu em forma de monólogos em verso. Já li chamarem-lhe poesia dramática, quando é poesia que pode ser lida enquanto poesia lírica e se encenada tanto melhor, porque tenho para mim que o teatro, servindo-se na encenação das restantes artes, é o cume da arte hoje, em poder e riqueza de expressão. Mas poesia dramática? E os textos originalmente narrativos? Os textos tornam-se dramáticos quando encenados e é essa a aspiração maior do dramaturgo. E, no entanto, a tragédia é sugerida na leitura, e é nesta rede de interligações que O Mapa do Mundo surge. Só que este livro tem a grande virtude de não necessitar de ser encenado para assistirmos a ele. Lemos e, lendo, temos poesia, drama, narrativa, inclusive encenação mental, com trama ou sem ela, em poesia dita ou lido como texto. Tudo é possível neste livro, e a linguagem poética ajuda, com um fresco sabor a renovação da sua herança com quase um século, que, por a renovar, não a repete, não a finge, como é vulgar suceder, já se disse. E os achados, as verdades, os socos no estômago apanham-nos indefesos no texto, surpreendem-nos. «Uma cidade é um contentor», disse O Filho a dada altura. Sem dúvida. E o que é um contentor? Um caixotão de aço com vinte toneladas de coisas dentro. E o que somos nós na cidade que é um contentor? Coisas. Não contamos. Eis como O Mapa do Mundo nos abana, além do mais. Onde colocá-lo? Onde quisermos, porque o livro está escrito e publicado, e a obra é assim mesmo, tão livre de classificações quanto é possível sê-lo. É um dos seus encantos e o que, em parte, o torna diferente. Muito perderia eu se não o tivesse lido.

 O Mapa do Mundo, Pedro Eiras, Companhia das Ilhas, Outubro de 2020.

 

 

 

17.1.21

Nota Sobre a Peste


A covid 19, como todas as pestes, é uma guerra com um só lado e muitas frentes, e essas frentes não estão unidas, as intenções, maioritárias ou não, estão longe umas das outras, e o carácter das pessoas e a falta dele fazem-me lembrar a invasão de França pela Wehrmacht em 1940, os franceses que a admitiram e a Resistência que a combateu. Talvez por isso me tenha ficado a ideia de que os generais gauleses eram fracos e não apenas o armamento obsoleto de que dispunham. Assim hoje nesta guerra, com a agravante de, nos estados-maiores, se lutar com o olho em sondagens eleitorais e na economia unilateral, cuja defesa os exércitos pagarão integralmente com vidas e pobreza, mas não os seus generais, semelhantes aos da França invadida, e muito menos os reis do mundo, cuja fortuna de zeros incontáveis à direita tem crescido e crescerá, sem escândalo, sobre as vítimas da peste. Dizem nas chancelarias que pouco se sabe do vírus e, com o respaldo objectivo dessa ideia, enfrentam-no com inépcia e lentidão, como na invasão da França de 1940, sabendo o que já se conhece da peste e aproveitando tardia e parcialmente a experiência de quem a combate com resultados, sem ir aí buscar práticas e a tão importante rapidez de decisão. Entretanto, seja-se optimista, não se pense sequer no futuro imediato, a lei das probabilidades joga a favor da sorte de cada um (primeiro morrerá o vizinho), e, felizmente para o seu sossego, a maioria desconhece que a estratégia da infecção é multiplicar-se exponencialmente, segundo o aumento dos infectados e, em consequência, do território ocupado. Os reis, nos seus cálculos, desde já contam com isso e com a esperança que é para todos nós a vacina e sabem que os despojos de guerra engordam a tesouraria com a demora da libertação e com a falta de disciplina sanitária. Que o digam Trump e a revista Forbes. Mas isso já não tem a ver com governos e eleições, e fazer parte do circo vale bem a carreira.

9.7.19

O Universo & Outras Ficções, de Carlos Alberto Machado.


Uma das principais características de O Universo & Outras Ficções, de Carlos Alberto Machado (C.A.M.), com edição de Companhia das ilhas, no corrente ano, é a boa surpresa que me causou, e causará aos demais leitores, o modo de se entrar na narrativa de quinze ficções, como o autor qualifica as histórias logo no título do livro. 

Miguel de Saavedra chegou a Dublin com o amigo e vizinho; estão no Atrium, assim se intitula a entrada do livro, por onde se passará para a narração das histórias; Pierre Menard, personagem de um conto de Jorge Luís Borges, no livro Ficções, será aqui personagem do Atrium, tal como Miguel de Saavedra, e a presença em espírito de José Luis Borges, presença marcada pela autoria dos últimos textos escritos por si, que Menard quer depositar nas mãos de Saavedra, e também pelas abundantes epígrafes usadas por C.A.M., e, a meu ver, ainda como partícipe no título O Universo & Outras Ficções. Estas duas personagens e o espírito de uma terceira, Jorge Luis Borges, estão presentes apenas no Atrium, entrada com seis páginas, e daí não passam. A justificação da sua presença é revelar o título dos últimos textos do escritor argentino, que é – nem mais O Universo & Outras Ficções, de C.A.M.. 

Deve ter sido um grande divertimento para o autor escrever este Atrium, aliás é uma característica de Carlos Alberto Machado manipular a realidade narrativa com uma desconstrução das personagens através da ironia bem-disposta, levada até à irrisão e ao nonsense. 

C.A.M. não é, de modo nenhum, um epígono de Borges, aqui o escritor argentino é apenas um meio de construção do Atrium, sem influir nas palavras, situações e contos. Vincado, sim, é o carácter estranho de muitas personagens e situações, e sempre que leio C.A.M., vem-me à ideia como as suas criações ficcionais em prosa parecem partilhar de algumas características do Teatro do Absurdo, como a paródia, falas com a presença de clichés e frases feitas, sobretudo em calão, a exploração do ilógico, do insólito, da estranheza, da linguagem baixa, da inutilidade humana, da violência, mas também de histórias, mais de fantasia do que de fantástico, que não existe no livro, de tudo isto está atravessado O Universo & Outras Ficções, estou a lembrar-me dos excelentes contos O Universo, Ur,  História Moral, Filosofia Analítica, sem que este lembrar-me retire o equilíbrio que o conjunto forma.  Uma obra engenhosa e bem conseguida, original, de leitura corrida, sem rodriguinhos.

22.1.19

Uma leitura em forma de carta

 20 de Outubro de 2018

Caro Helder G. Cancela

 Nunca fui leitor nem mesmo cinéfilo de ficção científica ou da sua oposta no tempo. Livro, nunca tinha lido nenhum, salvo na adolescência os de Júlio Verne, e filme só vi Blade Runer, que está no meu lote de filmes de culto preferidos. Tenho há muito para ver 2001- Odisseia no Espaço, de S. Kubrick, que aparece nos primeiros cinquenta dos cem melhores filmes da história do cinema, na lista dos Cahiers du Cinéma, e ainda não o vi porque duvido que me atraia e não quero pô-lo definitivamente de lado. Serve isto para dizer que cheguei iliterato ao género de ficção a que pertence o seu romance A Terra de Naumãn. Só por semelhança, o coloco na ficção científica, apesar de situar-se nos antípodas do tempo hoje futuro, por semelhança, escrevi, e também por desconhecimento de haver ou não classificação para um livro cuja acção decorre muito antes da Pré-História.

Tive três reacções principais na leitura do seu livro. A primeira foi que era um facto decorrente do assunto, do enredo e das personagens tomar os sáurios por humanos, na leitura e penso que durante a escrita do romance. Sem esta conversão, tenho para mim que nada do que fora escrito seria narrado e, portanto, nada haveria para ler. Devido ao interesse que a trama me suscitou, não apenas nem principalmente pelo uso do suspense e das viagens, bem mais pelo tema a que, no entanto, junto as deslocações de Alva ao mar, por serem muito importantes para as aspirações daquela sociedade em construção, devido à trama que me agarrou, ia dizendo, estranhei sempre como que a lembrança dada a espaços no texto de que eram sáurios, porque para mim eram homens, apesar de estes terem surgido sessenta milhões de anos depois do tempo da narrativa. Os ovos, de certo modo omnipresentes, para mim não eram ovos, mas o futuro, o Futuro com maiúscula, o grande objectivo dos naumans e a sua grande generosidade.

Outra reacção, e a mais importante, é que eu estava, pela leitura e pelos princípios morais e sociais, dentro daquela sociedade exemplar, na qual sobressai o carácter das personagens, o controlo rigoroso do poder para evitar o seu abuso, o dever público, a democracia real que une a sociedade, a democracia que poucos conhecem e a que os justos aspiram, os restantes limitados pela ignorância induzida pelos diversos poderes que os naumans recusam nas suas escolhas, acções, comportamento cívico e consciência de fundadores de uma nação (que é do que o romance trata). Durante as primeiras duzentas e trinta e três páginas de texto, num total de duzentas e setenta e nove, decorre uma epopeia que a humildade e a noção do dever perante o interesse colectivo afastam das epopeias que conhecemos. É uma epopeia guiada pela ética e pela moral (e não pela força ou pela aventura), em que até um prisioneiro tem um estatuto de direito que muito honraria as sociedades de hoje. É uma epopeia moderna, do nosso tempo, que me agarrou como, este ano, só a releitura de A Peste o fez (lida nos anos sessenta, foi como se a tivesse lido a primeira vez). E eis-me de volta à primeira reacção, para mim os sáurios tout court não estão no livro, fazem parte de uma grande metáfora que mostra ser possível, ou apenas sê-lo através do sonho, a existência de uma sociedade justa e bela devido ao seu povo consciente. Não há no livro, ao contrário do que se lê na contracapa, sequer uma sombra de narrativa juvenil nem vejo onde possa estar a fábula. É, de facto, uma epopeia exemplar, resultado de um pensamento adulto e lúcido.

Eu entendo o final, e aqui entramos na minha terceira reacção, tal sociedade não era possível, tornava-se necessário acordar-se desse sonho em nome da realidade. Mas perguntei-me seria preciso destruí-la? Era, senão o romance seria outro, e outro, o seu autor, diferente no pensamento e na visão do mundo, e a anti-epopeia, por não se pôr, não tentaria fazer o seu papel, que, a meu ver, não conseguiu durante as restantes quarenta e seis páginas, porque a epopeia prevalece na obra. Perguntei-me, por isso, qual seria o resultado na leitura se a trama mantivesse aquele país (domínio) em construção até final da narrativa e continuando depois dela, ainda que me parecesse obrigatório deixar dito ou sugerido a sua destruição futura para anular o seu lado utópico. Um romance optimista até â página duzentos e quarenta e dois, uma realidade ficcional, digamos assim, desejada por muitos como exemplo para o futuro, afinal o Futuro por que os naumans lutavam.

Sendo um romance em tudo diferente dos que escreveu, não pode comparar-se com eles por ser tão diverso, nomeadamente no seu carácter epopeico, mas não só. Foi uma surpresa para mim e um livro de elevada dignidade. Não o coloco ao lado dos outros que escreveu. Não é possível. Foi uma fuga do ambiente geral em que decorrem os seus romances e ocupa um lugar isolado, e de qualidade, na sua obra presente. A este propósito, não deixo de perguntar-me, sem com isso querer uma resposta, se não seria um livro escrito há muito. Nada o indicia, salvo ser um romance diferente no assunto e no tom. 

Só exige, e bem, ser lido como deve ser.

Receba os meus cumprimentos,

Nuno Dempster 

Nota: O livro foi escrito no verão passado. A publicação deste texto de correspondência tem o acordo do destinatário.

5.9.18

ENTREVISTA A CARLOS ALBERTO MACHADO A PROPÓSITO DO SEU RECENTE ROMANCE PUTA DE FILOSOFIA


Por Nuno Dempster


No passado mês de Abril, Carlos Alberto Machado fez publicar o seu novo romance Puta de Filosofia, em edição de Companhia das Ilhas. O livro está nas livrarias e na editora e, estou certo, um dos melhores prémios para o autor é ser bem lido, motivo desta entrevista e intenção de apoio à sua leitura.

A entrevista foi gizada antes de eu ter conhecimento de uma outra dada por Carlos Alberto Machado (CAM doravante) ao Observador. Curiosamente, dos assuntos aqui tratados, ainda que posteriormente acrescentados por influência da entrevista feita, só houve uma questão coincidente entre ambas, e por isso se eliminou, a saber, o motivo de o romance ter levado dez anos a ser escrito e publicado. Aliás, a pergunta diferia do espírito desta entrevista e, pela resposta de CAM àquele jornal, nada retirava ou acrescentava ao desiderato de sublinhar Puta de Filosofia como forma maior de literatura, multifacetada e livre.


ND  ̶ Para minha orientação e de quem nos leia, situo o seu Puta de Filosofia na literatura de carácter satírico, pela denúncia social e política presente como espinha dorsal do romance, pela crítica de comportamentos, pelo cunho jocoso de situações, pelo burlesco com que retrata personagens, pelo bom humor que respira. Sabemos que a sátira não se esgota em definições e que convive com outras formas de abordagem na mesma obra, literária ou não. Estou a lembrar-me da paródia que, em minha opinião, está presente no seu romance, na parte de «o nosso Primeiro», paródia que também surge associada à sátira em obras-primas como Dom Quixote de La Mancha ou, no Cinema, O Grande Ditador, ou ainda, em Pintura, O Jardim das Delícias Terrenas (painel de O Paraíso), para citar três exemplos largamente conhecidos. Gostaria de ter a sua opinião à luz do que afirmei.

CAM  ̶  Não sinto necessidade de incluir o meu Puta de Filosofia em qualquer tipo ou género de literatura, embora possa aceitar que o livro apresente um carácter satírico – mas tem outras marcas formais.

ND  ̶ Apesar de recorrer a ambiências próprias do romance policial, tendo em conta a minha pergunta anterior e sabendo nós o que buscam nesse género os seus numerosos leitores, não será um erro de paralaxe afirmar que Puta de Filosofia é um «policial»? Mais, não lhe parece bastante redutor?

CAM  ̶  O género policial, desde há umas décadas, deixou de estar preso aos cânones clássicos, e tem integrado ficções narrativas de muita diversa índole (tanto formais como de temas, etc.). Presumo, assim, que os leitores actuais não estejam presos a um estereótipo de género e que encarem o rótulo (que não é exclusivo) apenas como um estímulo ou desafio (até porque associado a “policial” está o “político”). 
            ND  ̶  Ou, como nos sucede mais do que uma vez, surpreendo-o com o resultado da minha leitura?

CAM  ̶ Não me surpreende. Se algum mérito o livro tem, é o de poder estimular muitas leituras diferenciadas.

ND  ̶ Pode ser sugestão minha, mas parece-me que emana de certo milieu uma ideia de menoridade da literatura de carácter satírico. Não é séria (bisonha e ensimesmada), não é pura e coisas assim. Que teria a dizer a esses putativos bem-pensantes, «vestais do puro» como Sena os qualifica num poema?

CAM  ̶ Não dou qualquer espaço na minha vida aos ditadores do gosto, seja a esse propósito ou a outro qualquer. Mas já que falamos disso: “humoristas” como o Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, são muito bem vistos e aceites por esses… puristas… Porque será? Trata-se apenas de uma questão mediática? Ou será por ser editado por certa editora? Ou por ser TêVêIsado? Ou por tudo isto juntinho?...

 ND  ̶ Tenho a ideia de que, em primeiríssimo lugar, se não único, se escreve para si mesmo, ficando o leitor à espera, sem se dar conta dele durante a criação. Foi com gozo que materializou o livro? Riu-se consigo mesmo em situações que ia criando? Teve a noção da originalidade satírica que percorre o livro e de que é um retrato muito português?

CAM  ̶ No meu caso, o processo de escrita deixa-se influenciar por um sem número de situações: e isto sem problemas, creio até que faço disso coisa positiva; portanto, o tal “leitor” também faz parte desse processo. Por vezes, depois de ter escrito partes de um livro, pergunto-me se o que fica dito abre espaço de compreensão para outros; ocasionalmente, reparo, por certas leituras, que não, que esse espaço ficou fechado, infelizmente – mas não altero o que escrevo por causa disso (em função de um “leitor” que é, no fundo, uma abstração). Este Puta de Filosofia foi escrito num período mais livre da minha vida, sem compromissos profissionais (eufemismo para desempregado). Talvez por isso, tive muito mais gozo em escrevê-lo do que outros (embora tenha sido no mesmo período que foram gerados outros escritos, uns que vieram já a lume, outros que estão para breve). Ri-me e rio-me – até de mim mesmo, pois não é essa uma característica da literatura satírica?

ND  ̶ Pela importância dos diálogos na evolução da trama e na definição das personagens, e pela sua qualidade per se, penso que não escreveria Puta de Filosofia, pelo menos com tanta vivacidade, se não fosse também dramaturgo com experiência cénica. Para além do enredo, será também por isso que Puta de Filosofia daria (e dá) um bom guião de filme, segundo afirmou ao Observador?

CAM  ̶ Sim, creio que a minha experiência no teatro (escrito e em palco) está muito presente, neste romance e em tudo o que escrevo. Quando disse que o romance poderia dar um bom guião de filme, tinha acabado de reler partes dele e essa sua característica foi então para mim mais evidente: pelos diálogos, pela definição das personagens (que se faz pelo que dizem e pelo fazem, e não pela “opinião” do autor), pelos planos e movimentos de câmara implícitos nas definições de “cenas”, pela ideia subjacente de editing (montagem), pelas sugestões visuais, etc.

ND  ̶ Se Puta de Filosofia não fosse o livro que é, haveria exageros, hipérboles em situações frequentes da narrativa. Concorda comigo quando penso que são traços voluntários, acentuados pelo carácter caricatural da obra, próprios da sátira e da paródia?

 CAM  ̶ Talvez… embora essa seja uma tendência minha (misturada com outras diametralmente opostas, e isso talvez seja uma das minhas “marcas autorais” – expressão que não me agrada muito mas que uso à falta de melhor).

ND  ̶ Este seu romance é muito rico em questões a pôr. Refiro-me a questões estéticas que, a meu ver, participaram, conscientemente ou não, no reforço desse carácter, pela criação de uma atmosfera pícara. Era isso que perseguia com o uso de palavras obscenas, digamos assim para não ferir ouvidos delicados?

CAM  ̶ É esse o meu universo linguístico-literário – e este romance tem também uma particular aderência ao real (embora por vezes pareça que não, que se trata de um universo paralelo…). A sujidade – verbal e outra – está muito presente em tudo o que fazemos, apenas lhe dei a visibilidade que me parece que deva ter.

ND  ̶ Ultrapassou de forma cabal o que me parece hoje ser moda em certa escrita, o uso, por dá cá aquela palha, de palabrotas, enfim, de carvalhadas, para usar o nosso vernáculo. Teve noção desse risco?

CAM  ̶ Leio pouca ficção actual, não sei o que se escreve com essa tonalidade, digamos assim. Sei que há quem goste disto e quem não goste, enfim. Mas, já agora, é curioso verificar (e eu tive essa experiência em diversas ocasiões), que até o “puta” do título é evitado pelas pessoas que querem falar do romance… Pois, parece que foi um risco (riso)!

ND  ̶  O que assistiu à ideia de pôr na pele de agentes da Judiciária a linguagem brejeira do submundo da «Grande Cidade»? E de os tornar personagens de sátira, a par dos seus chefes de serviço, de jornalistas de-faz-de-conta, de homens de mão, de um primeiro-ministro corrupto e mafioso, de uma preceptora suíça e até de duas crianças, Sandy e Dalila, numa passagem memorável que me fez rir sozinho, enfim, de gente que passa na galeria de retratos que é o seu romance?

CAM  ̶ A linguagem brejeira nos momentos Sandy é residual. Nos outros, é como lhe disse, estamos afundados na sujidade (política, etc.), e o escatológico literário pode ser uma maneira de reforçar esse traço societal. Não sou o primeiro a fazê-lo, como sabe; apenas espero que o tenha feito de certa forma original…

ND  ̶ E quanto ao uso de maiúscula em palavras e situações que, não as negando, as não exigem? A mim parece-me que é para conferir importância ao que não a tem, acentuando as contradições de que a sátira vive. Cito, por exemplo, Menino (Søren), Grande Cidade (a capital, onde decorre a acção), Rainha de um Rei preto, Guardiã, Garante, uma Catedral, Primeiro (primeiro-ministro. O caso que refiro de maiúscula é o nosso Primeiro, forma de tratamento militar dado a sargentos, entre eles os primeiros-sargentos, sem dúvida no romance um modo sarcástico de, repetidamente, nomear o primeiro-ministro), etc.. Estarei certo?

CAM  ̶ É sem dúvida uma forma de particularizar certas personagens, lugares e instituições. Mas também, por artifício puramente literário, atribuir-lhes um lugar acima do nosso quotidiano e, desse modo, ampliar-lhes o estatuto, dar-lhes relevo, etc. Não são quaisquer personagens, lugares e instituições nem o seu contexto é de vulgaridade, de banalidade.

ND  ̶  Calão urbano, palavrões, uso de maiúscula e agora nomes estrangeiros, muito maioritariamente dados a personagens principais, que são portuguesas, Søren Constantius, Sandy, Meyer, Jimenez, Angelica (sem acento é italiano) Mistral (francês de origem), Miguelito (comummente espanhol), Emmanuel (hebreu) Olivares (castelhano), se não me falha nenhum. Há ainda Meirelles, com dois eles, à antiga portuguesa, informador e pária social, como se quisesse ostentar ascendência nobre, com um efeito ainda mais vincado do que se fosse estrangeiro. Penso que esta estranheza de nomes contribui para a verosimilhança do enredo, que, aliás, não é questionável em todo o romance, por mirabolantes que sejam, numa leitura em abstracto, algumas situações. Esta opção, que é real, foi propositada ou pertenceu ao subconsciente que assiste na criação?

CAM  ̶ A opção da escolha dos nomes estrangeiros é absolutamente consciente (presente no meu O Mar de Ludovico, e nos romances que se seguirão, sobretudo no Hotel dos Inocentes). Neste caso, creio que acentua, bem, que existem aspectos, situações e pessoas que pertencem a outros universos geopolíticos, não apenas ao português. Por outro lado, ao afastar-se do universo doméstico, deixa mais liberdade de leitura do essencial, parece-me.

ND  ̶ As analepses da infância de Søren Constantius, a personagem central, Sandy de seu nome em criança, a meu ver dão volume à personagem, não ao tempo, simplesmente porque não é preciso alargá-lo, e como que permitem aumentar a base psicológica de Søren para tornar verosímil o fim da intriga, fim também aqui moral, à semelhança das considerações finais das sátiras clássicas. E essas analepses preparam a personagem adulta em volume, sem abandonar a ironia, a boa disposição e mesmo o carácter satírico, embora este com menos presença. Concorda comigo?

CAM  ̶ Eu diria que os tempos de Søren e de Sandy lhes dão espessura enquanto personagens mas também alargam mundivivências, ou deixam que certas mundivivências sejam partilhadas com o leitor, para lá da “intriga” (plot). Não creio que o final proponha uma “moral” de sátira clássica (o mundo fica muito longe de se reordenar); creio que se instala um vazio, nada é resolvido, nada é proposto como alternativa; a atitude de Søren é nihilista, talvez.

ND  ̶ Longe e imiscível, na minha opinião, fica pois Puta de Filosofia em relação aos policiais. Também não se põe a questão de o primeiro-ministro ser fulano ou sicrano. A corrupção pertence ao humano universal. É uma leitura imediatista e deformadora que não leva em consideração os arquétipos necessários à efabulação. Não lhe parece?

CAM  ̶ O primeiro-ministro pode ser fulano ou sicrano, mas também pode ser um universal: creio que é esta ambiguidade que enriquece a fábula. Se escapa aos arquétipos, pois, não há nada a fazer a não ser aceitar experimentar este caminho novo – e este poderá ser igualmente um desafio do meu Puta de Filosofia.

ND  ̶ Dadas as características do livro, entre as quais a crítica ao aparelho de Estado e a leitura bem-disposta, tem a noção de que Puta de Filosofia pode ser um honesto best seller?

CAM  ̶ Aqui, não. Comigo, não. Não pertenço (nem quero pertencer) a qualquer feudo, capelinha, lóbi, & afins, qualquer desses que dominam o meio editorial e de comunicação de massa (crítica literária incluída). Trata-se de uma contradição de termos: Carlos Alberto Machado e sucesso editorial (de massa, comunicacional, etc.). Não. E estamos bem assim.

ND – A pergunta anterior, ainda que não respondida segundo o intuito com que a fiz, teve a utilidade de revelar o seu modo de estar em Literatura, que é acima de tudo ético e lúcido. Constato que o termo best seller hoje se associa de tal modo ao debitar industrial de palavras que mesmo o qualificativo honesto, que antecipa o palavrão, não foi suficiente para traduzir a ideia da pergunta. Mas aproximemo-nos dela. Tem a noção de que Puta de Filosofia pode e deve ter, por qualidade e mérito, uma ampla recepção dos leitores, entre exigentes e menos exigentes?

CAM  ̶ Pois, pois é… mas logo que ouço o “palavrão” logo os sinos de alarme tocam a rebate. Um livro, este ou outro que mereça esse nome, deve ser conhecido, circular informação sobre ele, ter locais de exposição e uma comunidade interessada de leitores. E tudo isto pode ser mais ou menos alargado, é verdade. Mas o panorama do “mundo do livro” em Portugal é desolador. O espaço público está prisioneiro de grupos de interesse poderosos que falam do que querem e escondem o que os incomoda. O Helder Gomes Cancela (no ano passado, em entrevista à MJ Cantinho) disse isto que assino e sublinho: «(…) o espaço da crítica está tão rarefeito que em termos práticos é determinado pelas opções de um muito reduzido número de pessoas. É deles a responsabilidade por quem escolhem promover ou silenciar.» O silenciamento: o pior de tudo é o silêncio: não se discute o que não existe, o silêncio imposto é isto. Desolador. O Helder, no mesmo contexto, diz também: «Ninguém nos lê hoje, ninguém, provavelmente, nos lerá no futuro.» Best seller, o meu Puta de Filosofia? Mesmo «honesto», isto é, com «uma ampla recepção dos leitores, entre exigentes e menos exigentes»? Hum…

ND – Nuno Dempster.
CAM – Carlos Alberto Machado.
Puta de Filosofia, edição de Companhia das Ilhas, Abril de 2018.


 
Free counter and web stats